Ela convive há tempos e tempos com as sombras pegajosas de uma depressão renitente, sem causa e sem remédio. Não exatamente sem esse, pois trata-se com o primo Ruy, psiquiatra e Professor Doutor em Catanduva. Sua confiança de pedra nele e os cuidados que recebe, penso, é que a mantêm entre nós lúcida e lidando sua lida ingrata. De moçoila expansiva, namoradeira, olhos claros muito bonitos e bom corpo, tornou-se mulher quase opaca, olhar mortiço fixando nos longes uma funda tristeza. De um passado, creio, que nem existiu.
Casou-se cedo com um italianão avantajado, que fala alto, uma imprecação em cada frase. Coração de manteiga, apenas um meninão barulhento. Fez coisas do arco da velha para botar comida, muita comida, nas panelas. Ela igualmente lutou ao lado dele. De caminhoneiro de longo curso — tinha um trucado International KB-7, o único de dez rodas em Olímpia na época — a dono de boteco e depois, já com um veículo bem menor, recolhedor de leite na zona rural. Latões aqui, lá e acolá, trabalho em que era ajudado pelo cunhadinho, meninote que abrigara para terminar o ginásio numa das inúmeras mudanças do sogro. Bebia um litro de qualquer coisa que tivesse álcool em viagens curtas que não batiam em quatro horas. Hábito que deixou da noite pro dia quando morreu seu melhor amigo, o Pedro Come Língua, também adicto. Mais velhos e já aperrengados com suas macacoas, passaram a fornecer alimentação para os detentos do CDP de Olímpia. Trabalheira insana, comida para 70 ou 80 pessoas. Era café da manhã, almoço e janta com sobremesa e refrigerante, lanche da tarde e chá da noite. Dinheirinho do contribuinte enchendo bandulho de malfeitores. Fazia tudo muito bem, pois cozinheira de truz, malgrado não tão boa quanto a mãe, D. Ritinha.
Comendo da banda podre da vida embora,
criaram e formaram três filhos. O primeiro dentista, o segundo agrônomo (seria, mais tarde e pelas próprias pernas, também advogado) e o último, médico. Este levou um colega da faculdade para casa num fim de ano, véspera de Natal. Levantaram-se tarde, já havia panelões enormes no fogo com lauta (ia dizer opípara, mas ignoro o que seja) bacalhoada.
Sentaram-se na varanda, em roda das cervejas. Certa altura, sacudido pelo cheiro bom, o colega foi bispar o almoço. Estava em casa de mineira e italiano, onde não entram cerimônias nem salamaleques. Voltou arregalado, perguntou ao Tenorzim quem ia comer toda aquela comida que sua mãe fazia. Haviam feito segredo — por troça, coisa do filho — a respeito dos outros comensais, os presos.
— Nós, uai — ouviu em resposta. — Meu povo gosta muito de bacalhoada. E vêm meus dois irmãos.
Mesmo assim, era demais da conta. O colega guardou-se em copas. Tenorzim não deu mais esclarecimentos, assunto morto. Bem bebidos e aperitivados, tiraram uma soneca. Aí pelas três da tarde, levantaram-se, foram beirar panela. Havia bastante de tudo, mas esse bastante era nadinha perto das paneladas derramando pelas tampas de ainda agorinha. O marido já montara as 80 marmitas que foram na velha Belina para a cadeia, durante a sesta dos dois.
— Pelo visto — comentou o anfitrião —, não esperaram a gente. Adiantaram--se na comilança. Comeram calados, mesmo porque estudantes de república não ficam muito prosa diante de pratarradas de bacalhau, ora pois.
De vez em quando, os agora doutores se lembram daquela véspera de Natal e o amigo diz a Tenorzim que não pôde acreditar que sua família gostasse tanto de bacalhoada. Riem da patranha. Talvez bacalhau nem seja prato natalino. É que Tereza ardia-se de pena dos seus comensais do xilindró e, sempre que podia, encurtava ainda mais o já parco lucro e mudava para melhorar o cardápio rígido estipulado em contrato. Dói fundo saber que tantos não terão fartura nesses dias. Oro para que todos estejam abençoados e guardados pelo Pai.
HÉRCULES DOMINGUES DE FARIA,
BANCÁRIO APOSENTADO E FORMADO
EM LETRAS, FOI COLUNISTA DOS
JORNAIS ‘CORREIO DE MIRASSOL’
E ‘DIÁRIO DA REGIÃO’