ENSAIO

O fator Lula

O fator Lula

Publicada há 6 anos

Gil Piva



Quando o sociólogo Zygmunt Bauman cunhou o termo líquido para substituir o até então vigente pós-modernidade, o que pouco se soube é que, com a palavra líquida, Bauman pretendia representar uma visão sobre a sociedade contemporânea para além da óbvia interpretação de “instabilidade”, “inconstante”, etc. Assim, concebe-se principalmente a ideia de imprevisibilidade (ameaçadora, no caso); ou seja, as incertezas só mantêm os excessos que tangem as relações humanas e ainda mais precárias as desigualdades econômica e social.


Portanto, diante das atuais estratégias de poder, nem tudo o que se produz hoje é possível controlar, o que gera, de outro modo, e a partir de políticos com discursos nacionalista e populista, um misto de ansiedade e ódio, afinal tal discurso tende a projetar uma sensação (quase sempre falsa) de pertencimento e segurança: porque a luta de classe deixou de existir mediante a visão tradicional, e a lógica emerge sobre a vigilância de cada um sobre a sociedade e a sociedade sobre cada um.


A característica contundente do fenômeno Lula, que mesmo após ter sido condenado continua a garantir um culto predominante à sua figura, renegando de forma gratuita o mecanismo legal de apuração e investigação para crer num pressuposto conspiratório-político, provém de um aspecto romântico, onde se acaba “transferindo o locus da autoridade emocional, moral e intelectual de si”, como expressou Theodore Dalrymple no sagaz Podres de mimados: as consequências do sentimentalismo tóxico (É Realizações, 2011): pois “a um choque bastante trivial [trivial aos olhos da lei, porque investigar é uma ação normal] foi provavelmente provocado, ao menos em parte, pela esperança de indenização, a forma moderna de alquimia que transforma aflição em ouro [pagarão os que alegam culpado um inocente]. E a motivação exagerada logo se torna um hábito, é todo um modo de vida”.


O que Dalrymple traz à tona é o fato irônico de toda autovitimização produzir tanto uma indignação coletiva quanto uma comoção — porque ser uma vítima significa ser beneficiário da injustiça. Não fosse pelo consentimento que demonstra que arguir contra qualquer ato conceitual de “pobreza”, “desfavorecidos”, “minorias”, etc., (e esses adjetivos têm por costume ser aplicados num contexto vazio), pode resultar num “apedrejamento” moral; Dalrymple ressalta que ninguém nega a necessidade de ajuda, compreensão e ajustes a esses veios sociais, porém torná-los indistinguíveis diante de uma turba pode criar uma “conexão entre o sentimentalismo [tóxico] e a lei do linchamento”.


Quando Lula diz, por exemplo, que seu “único crime foi colocar pobre na universidade”, ele está criando um clima, lançando uma expressão excessiva de emoção. Trata-se de um mecanismo cuja expectativa é não estabelecer dúvidas a respeito de sua virtude.


Essa postura atrai milhares de simpatizantes porque equivale a modificar as próprias consequências de seus atos e do poder político num tipo de apelo ideológico, por assim dizer. Em outras palavras, seria o mesmo que dizer que um usuário de drogas acaba visto como alguém marginalizado pela sociedade, daí a razão de seu vício — muito embora, com todos os mecanismos de assistência existentes, uma enorme parcela da população exija do governo uma reparação para o vitimado estado em que se encontra o sujeito (desfavorecido) —. O perdão judicial discutirá o enfrentamento da culpa x dolo. Os inúmeros aspectos de uma bondade exacerbada rigorosamente desculpa qualquer infração dolosa, como no caso do ex-presidente.


Outra exigência da emoção pública é usar do artifício de esmiuçar uma sociedade amplamente dividida entre o eu e os poderosos. O filósofo John Gray, no livro Missa Negra: religião apocalíptica e o fim das utopias (Record, 2008), conclui que revoluções políticas apenas serviram para “potencializar a violência em níveis jamais imagináveis”. Gray mergulha nas utopias modernas para revelar o modus operandi das crenças e convicções políticas. Na esteira atual dessas convicções, a busca da esquerda petista pela utopia tornou-se uma base totalitária, depois de décadas de fracasso progressista. Por ora, o que se vê são os “avanços” adquiridos de interesse partidário que não dispuseram de melhor progresso humano ou social.

Gray rejeita, ao chamar de missa negra a relação entre política e religião, o caráter missionário e salvacionista que de maneira contemporânea os partidos ou políticos persistem delirar como estratégias de um modelo ideal de democracia, um discurso sedutor e carismático. Lutar contra um suposto algoz simboliza uma manifesta virtude, talvez um modo inevitável de se legitimar os fundamentos de “sua suprema importância” e “as condições de sua ‘fiança’”, segundo Dalrymple.


Dalrymple vê na história do esteticismo romântico do sec. XVIII — seguindo a estrutura de uma ideia limitada a um tempo — os aspectos que geram questões sobre a possível ou não maldade do mundo, as virtudes, as ideias insensatas que também serviram para dar mostra genuína a princípios morais e éticos e que também se corromperam por uma nova idealizada forma de justiça, que “legitimaria” a larga malha social, como condescendentes a massacres; ou seja, ele aponta que a máxima vox populi, vox Dei é uma crença sempre resgatada mais para benefícios suspeitos do que para reivindicar as extraordinárias condições brutais de vítimas reais.


Isso significa que as incertezas políticas resultadas pelo sentimentalismo têm combinado problemas peculiares que terminam defendendo a autocompaixão compassiva, isto é, a autoindulgência considera que a condescendência pública equivocadamente não entrevê nesse ato a presunção de uma arrogância suscetível pelos fundamentos do multiculturalismo.


Preponderante, a facilidade com que preceitos de uma universalidade humanista (confinada à esfera relativizada — multiculturalista — do conceito de bondade) causam reações de indignação e revolta é mutuamente assimilável à tradição política de valorizar como perversa o influente poder de desestabilizar suas supostas “intenções sociais”. Na verdade, triunfa uma demanda de apetite ideológico lulista de que estão negligenciando a seriedade de um heroico progenitor.


Antes de ser preso, em sua última apresentação pública, Lula não abriu mão de retomar velhas marcas discursivas que reincidem sobre o sentimentalismo autocongratulatório: alternativa que alimenta sua presumível condição à mercê de uma insondável perseguição política.


Deve-se então concluir que o impacto dessa autovitimização é uma declaração que funciona tal qual um digno louvor de si mesmo. Dalrymple ressalta que a acusação prepara o cenário para que o lado emocional aflore e fortaleça o “retrato sofrido da vulnerabilidade da ‘vítima’”, a fim de apresentar uma natureza sintomática de credibilidade.


Sendo assim, “ventilar emoção em público é sempre algo bom e saudável, e que manter dignamente o silêncio, ou demonstrar fortaleza, é sempre uma coisa ruim e noviça. Mas mesmo que ventilar emoção em público fosse algo bom e saudável, não se seguiria que um tribunal de direito é o lugar para fazê-lo”.


Nessa justificativa, prevalece a sensação de que um tribunal representa interesses escusos com vínculos partidários. Isso em si já é motivo suficiente para o processo das aparências, segundo o qual a razoabilidade da lei passa a se configurar num revide, de acordo a teoria de um cerimonioso mal acometido de maneira injusta e arbitrária, para se reparar os danos causados pela vil intenção condenatória.


Lula e seu séquito converteram, exaltados, a ideia de que a “salvação” deve ser coletiva e não individual, abrangendo uma vida perfeita como se fosse apenas questão de um aperfeiçoamento de seus valores políticos.


Contra tal uníssono dimensional, Gray argumenta que a utopia libertadora possui em seu ventre um desdobramento que só pode ser resolvido por decisões radicais: de onde sua base articulatória messiânica sentencia a excepcionalidade de um manifesto cujas crenças influenciam a cultura pública. Mas não se deve supor, segundo o que defendem os admiradores de Lula, que por ele ter sofrido tudo da forma como acreditam que sofreu, ele se exime de culpa; o importante para que a célere condescendência não soe indiferente, basta, com o mínimo de certeza, afirmarem que ele tenha (ou esteja) sofrendo — nesse ínterim, simplesmente, a atribuição do sofrimento, retoma Dalrymple, “reconcilia a pessoa [sofredora] consigo mesma ao ser recebida por parte dessa comunidade”.


E isso é tudo: essa espontaneidade gerada no papel populista de Lula deu à sua ambição uma propriedade social e, assim, seu entusiasmo retórico se contorce numa desonestidade intelectual. Hoje (e principalmente observado no caso do ex-presidente), o sentimentalismo de massas estabelece as forças para uma abordagem manipuladora — “com o fim de promover a si mesmos”, sentencia Dalrymple.


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