INOCÊNCIA ROUB

Relatos de vítimas de estupro intrafamiliar

Relatos de vítimas de estupro intrafamiliar

Publicada há 6 anos

Por Livia Caldeira / Bárbara Scholl



As imagens mais frequentes que nos vêm à cabeça ao pensar em um estuprador na maioria das vezes é a de um homem à espreita, um estranho que brutalmente ataca a vítima, obrigando-a ao sexo forçado. No imaginário das pessoas, o estuprador é quase sempre um indivíduo desconhecido, assustador, com distúrbio de personalidade, cruel, frio e calculista ao ponto de cometer um ato bárbaro. Seria estranho pensar que esse “monstro estuprador” é um pai de família, um cidadão de bem, um homem honesto e trabalhador?


A violência sexual intrafamiliar afeta a sociedade de forma severa. O problema assume uma gravidade de proporções ainda maiores quando a vítima desse tipo de violência é menor de idade. Por mais absurdo que possa parecer, grande parte das vítimas possui entre 8 e 12 anos. Na maioria dos casos, o estupro acontece dentro do próprio lar da criança e, paradoxalmente, o autor do crime é alguém conhecido por ela, de convívio quotidiano, aquele que deveria estar cuidando, educando-a e protegendo-a.O tema é polêmico e controverso, especialmente porque fere o conceito de “família feliz” que permeia a sociedade. Seguem abaixo as histórias de Cecília e Viviane que têm em comum uma infância que não foi vivida.


O CASO DE CECÍLIA


Santa Fé do Sul, 11 de março de 2018. Cecília (nome fictício) se apresenta para a entrevista. Uma mulher de 44 anos, mãe de dois filhos e esposa. Como já era esperado, ela escolhe conversar com a reportagem em um dia em que se encontrava sozinha em casa. Muito receptiva e comunicativa, ela mesma determina o rumo da conversa e decide começar a entrevista falando sobre aquilo que mais a faz “feliz” hoje em dia: seus filhos. Mas não demora muito para que o bate-papo tome outra direção. Ao ser questionada sobre qual a lembrança mais feliz que ela tinha de sua infância, seu semblante improvisamente muda. O olhar sereno dá lugar a uma expressão perturbada, ela demonstra-se visivelmente agitada. A impressão é de que o céu, que naquela manhã era limpo, claro e ausente de nuvens tivesse ficado escuro, prestes a começar uma tempestade sob nós. Suas mãos começam a se entrelaçar e se abraçar e Cecília se fecha, numa tentativa de não deixar transparecer as cenas de horrores que naquele momento vinham à sua cabeça.

 

INFÂNCIA CEIFADA

“Não tenho boas lembranças da minha infância” são as únicas palavras que consegue proferir. Ela permanece por alguns minutos em silêncio, engole o choro e depois nos revela um segredo que guardou sozinha por mais de trinta anos:

“Minha infância foi ceifada. Não pude desfrutar da minha infância como as outras crianças devido a um assédio sexual que tive pelo meu pai. Pelo meu próprio pai”.

 

A OCASIÃO REVELA O CRIMINOSO

O ano é 1981. Cecília tinha apenas 7 anos de idade e a filha mulher mais nova da casa. Pertencente a uma família humilde, sua mãe decidiu começar a trabalhar fora para ajudar no sustento de casa. “Ela fazia bordados e depois viajava para a São Paulo para vender seus artesanatos”, conta. A mãe queria proporcionar uma vida melhor aos filhos, mas sua ausência se transformou na ocasião perfeita para que o estuprador que morava na sua casa, pai de seus filhos, começasse a cometer os crimes. “Ele começou a se aproveitar dessa oportunidade e abusar de mim”, relata.


Cecília era uma criança como tantas outras. Ela brincava, frequentava a escola, fazia os deveres de casa, adorava cães e gatos, gostava de comer lasanha e, como qualquer criança da sua idade, ela confiava em seu pai, via nele a figura daquele cujo papel era protegê-la. Por isso, ela demorou a entender o que estava acontecendo. “No começo ele falava que era normal e eu não entendia mesmo nada do que estava acontecendo, era só uma criança. Lembro que eu era muito inocente, não sabia de nada. Jamais fazia ideia do que era aquilo, se podia ou não podia. Mas mesmo criança, eu sentia que aquilo não era certo, até porque eu não podia contar nada para ninguém”.

 

ADOLESCÊNCIA

Aos 14 anos, seus pais se divorciaram. Cecília pensou que seria o fim da violência física e psicológica a qual estava sendo submetida. Mas o pior ainda estava por vir. “Ele se separou da minha mãe e me obrigou a ir morar sozinha com ele. Dizia que se eu não fosse iria matar todo mundo. Ainda sinto a mesma angústia e a mesma dor no peito que sentia quando tocava o sinal da escola para a gente ir embora. Eu sabia que tornaria para casa e meu pai estaria me esperando para fazer sexo. Ele me usava como uma verdadeira esposa, eu era obrigada a ter relações sexuais com ele todos os d...”. O choro não deixou que ela terminasse a frase.

 

AMEAÇAS

Na maioria dos casos, a principal arma usada pelo estuprador são as ameaças psicológicas. E com Cecília não foi diferente. “Ele me ameaçava, dizia que se eu contasse para alguém ele iria matar eu, minha mãe e meus irmãos. Dizia também que não tinha medo de ir preso porque se mataria em seguida. Eu era uma criança toda inocente, tinha o meu irmãozinho mais novo que ainda mamava e eu olhava ele e pensava: ‘Eu realmente não posso contar para ninguém, meu irmão não pode ficar órfão’. Eu tinha muito medo de ser a causadora de uma tragédia na vida das pessoas que eu mais amava. Por isso eu fui guardando tudo comigo. Eu guardei somente para mim para não fazer a minha família sofrer. Minha mãe, principalmente, que é uma guerreira. Dessa forma, o sofrimento ficou reservado somente a mim”.


Muito cauteloso, o pai também se precavia em relação a uma possível gravidez. “Ele sempre me dizia: ‘Filha, se uma dia você engravidar, eu vou te levar no meio do mato, você vai rolar na terra, eu vou rasgar toda a sua roupa e depois vamos a delegacia e você vai dizer que foi violentada por um desconhecido’. Essa era mais uma pressão que eu tinha na minha cabeça”, conta.

35 ANOS DE SILÊNCIO

Nesse momento da entrevista, Cecília já não conseguia mais conter o choro. A sua dor era visível, o seu sofrimento era nítido. Décadas se passaram, mas a angústia dentro dela parecia ser a mesma dos dias de 1981. Cada palavra pronunciada por Cecília fazia abrir uma ferida na sua alma nunca cicatrizada. Ela decide continuar e, pela primeira vez, desabafar uma história que até três meses atrás, nunca havia tido coragem de contar a ninguém.


“Eu guardei isso ‘só’ por 35 anos sozinha. Para os meus filhos ainda guardo segredo. Não quero que eles saibam. Todos ficaram sabendo disso há três meses (fevereiro de 2018)”, explica. Em seguida, prossegue com alguns detalhes a mais. “Ele fazia tudo o que você pode imaginar. Ele fazia de mim como se fosse esposa dele. Eu fazia com o meu pai coisas que nunca fiz com o meu marido”.


HORA DE REVELAR O SEGREDO

A depressão é só um dos muitos distúrbios que Cecília carrega consigo. Ela sofre da doença há anos e, recentemente, viu seu estado psicológico piorar em decorrência de outros problemas de saúde. Foi quando decidiu que era o momento de revelar o segredo que por anos escondeu de todos. “Eu fiquei muito doente recentemente e esse segredo começou a martelar em minha cabeça, eram pesadelos que eu tinha a noite com ele (pai) em cima de mim, me torturando... 

Passei por uma fase muito difícil ultimamente porque a minha mãe teve câncer, no mesmo período recebi a notícia que a minha sogra também estava com câncer. Sofri um infarto na semana seguinte. Tudo isso influenciou muito para eu ficar pior do que já estava. Comecei a ser pressionada pelo fato do que minha mãe não podia morrer sem saber toda a verdade. Com isso tudo, a depressão tomou conta de mim e fui ficando pior cada vez mais. Foi aí que resolvi procurar psiquiatra e psicólogos para me ajudarem. Eles rapidamente descobriram o segredo que eu há décadas guardava comigo”.

 

 A FILHA REBELDE

Os profissionais a orientaram a contar toda a verdade aos seus familiares. “Eu tinha medo de perder a minha mãe e ela não ficar sabendo a filha que eu fui. A vida toda fui julgada como a filha rebelde, rígida, polêmica, indisciplinada... Ninguém sabia, ninguém podia imaginar o que eu estava passando e que a minha revolta tinha um motivo”.  Nesse momento da entrevista já não era mais preciso elaborar perguntas, Cecília estava revivendo todo o seu trauma e voluntariamente se confidenciava conosco na tentativa de se sentir compreendida.

 

MEDO DO JULGAMENTO

“Eu carrego e sempre carreguei nas minhas costas uma culpa que não é minha.É muito fácil as pessoas me julgarem, me questionando porque eu não contei tudo antes, mas só quem passou por essa situação sabe do que estou falando. Antigamente os julgamentos eram muito piores do que hoje, iriam dizer que eu era a culpada, que eu tinha provocado. Na rua eu ia ser sempre apontada como a menina que foi violentada pelo pai. Eu não queria destruir a minha família”.

 

ÓDIO DA MÃE

Por muito tempo, antes de frequentar psicólogos e especialistas da área, ela teve raiva da mãe. “No meu pensamento ela era a culpada. Era só ela arrumar a mala e ir viajar que eu ia ser estuprada”. Mais uma vez ela começa a discorrer sobre sua história com muita dificuldade, intercalando suas falas com choro e pausas de reflexão. “Hoje, eu sei que ela me deixava em casa para poder cuidar de mim e de meus irmãos. A situação econômica não estava fácil e para sustentar a casa ela enchia a bolsa de bordados e saia em busca de clientes por São Paulo, ela sempre estava trabalhando para dar as coisas aos filhos”, explica. O sentimento de culpa ainda permanece vivo em Cecília. “Eu sinto muito, mas por toda a minha vida guardei comigo essa mágoa da minha mãe. Queria ao menos que, caso ela falecesse, soubesse que eu fui sim uma boa filha”.


IMPUNIDADE

Anos se passaram e o pai de Cecília, um senhor idoso hoje, com 78 anos, continua andando pelas ruas da cidade de cabeça erguida. Ele sai de casa e deseja “bom-dia” aos vizinhos, frequenta supermercados, bares e outros estabelecimentos do município onde mora, se relaciona com os amigos. Considerado um cidadão de bem, acima de qualquer suspeita, sua reputação de homem honrado continua intacta. Os incontáveis estupros cometidos por ele contra a própria filha nunca serão julgados. Dos 7 aos 16 anos Cecília gritou em silêncio e sofreu calada nas mãos de um criminoso que atendia por ela pelo nome de “pai”. A impunidade faz com que todo infrator se sinta no direito de cometer outros crimes. Não foi diferente com o pai de Cecília. Ele fez outras vítimas. “Meu pai hoje é divorciado da minha mãe e já construiu outras famílias com outras mulheres. Inclusive, chegou a abusar de uma outra enteada”.

 

HOJE

O ano é 2018. Décadas se passaram dos abusos sexuais. Seu pai continua impune. Já Cecília faz terapia e tratamentos médicos na tentativa de amenizar o trauma sofrido. “Todas as noites tenho que tomar medicamentos muito fortes para conseguir dormir”, conta. Apesar da tentativa de aliviar sua dor, ela revela que os remédios nunca serão capazes de curá-la. “A minha ferida é interna, está na minha alma”.  Ela conta que mais de uma vez já tentou se suicidar. “Tentei me matar com uma overdose de remédios, já procurei tirar minha vida usando um revólver... Não tenho motivos para viver, só não cometo uma loucura pois tenho meus filhos”. Questionada sobre os sonhos que gostaria de realizar, ela responde com ressentimento: “Em mim não tenho sonhos, perdi a capacidade de sonhar, só quero ver meus filhos com saúde e bem”.  Pensativa, ela para de falar e começa a refletir com si mesma. Após uma pausa, ela parece querer compartilhar conosco sua reflexão. “Meu pai viu eu nascer, ficou me esperando na UTI neonatal, me pegou no colo e trocou as minhas fraldas. Ele, que tinha que me proteger como pai, foi o responsável por toda a minha dor. Ele roubou minha infância, roubou minha vontade de viver...Por culpa sua não sou feliz hoje e nunca vou ser”. Com essas palavras ela finaliza a entrevista e começa a olhar para o cenário ao seu redor. Observa com atenção o seu quintal, a mesa sob a qual apoiava as suas mãos, o enfeite da porta da cozinha, os azulejos da parede, o filtro de água... Claramente ela estava tentando voltar a realidade de hoje após ter revivido todo o trauma.


O CASO DE VIVIANE

Fernandópolis, 19 de abril de 2018. Viviane (nome fictício), 26 anos, caminha de cabeça baixa pelos corredores da faculdade onde cursa pedagogia. É uma das centenas de universitários que naquela noite transitavam pelas dependências da instituição de ensino. Parece ser uma normal estudante. Ela vestia calça jeans larga, tênis, camiseta cinza, cabelos compridos e cacheados presos. Nenhum tipo de maquiagem podia ser notado em seu rosto e não usava acessórios, além dos óculos de grau. A convidamos para uma conversa em uma sala vazia da universidade. Foram muitos minutos de conversa para que pudéssemos ganhar um pouco da sua confiança. Arrancar palavras de sua boca era uma difícil missão. Mas, muito perspicaz, ela logo entendeu onde queríamos chegar. Foi preciso muito tempo de bate-papo para que ela começasse finalmente a nos depositar a sua confiança.

 

MAIS DE DUAS DÉCADAS DEPOIS

O ano é 2002. Passaram-se 21 anos da data em que Cecília foi violentada pelo pai. Nesse intervalo de tempo o vídeo game PlayStation 2 é lançado no Brasil e vira febre entre os jovens, surge o pendrive para substituir o disquete e o CD, as redes sociais estabelecem uma nova forma de relação entre as pessoas, chega no mercado o mp3, câmera digital, televisores com imagem digital... Muitas coisas mudaram de 81 a 2002. Lamentavelmente o caso de Cecília continuou a se replicar em outras meninas. A distância temporal não conseguiu evitar que outras “Cecílias” se tornassem vítimas do mesmo problema e reféns do mesmo sofrimento.


Viviane foi apenas mais uma que teve sua infância e adolescência sacrificadas pelo mesmo mal que atingiu Cecília. Órfã de pai, ela inicialmente se limita a descrever sua mãe como extremamente religiosa (evangélica) e muito severa. “Eu não podia sair de casa a não ser para ir na casa dos meus avós ou escola, não podia usar roupas curtas, conversar com desconhecidos, ter amizades masculinas. Minha liberdade era bem restrita”, explica. Os ensinamentos religiosos eram preconizados pelo pastor e repassados a Viviane por sua mãe. “A religião sempre foi muito presente na nossa vida”.

 

A CHEGADA DO PADRASTO 

Aos 10 anos de idade, ela ganhou um novo membro para a sua família, que agora estava completa: Viviane, a mãe, um irmão e um padrasto. O companheiro da mãe parecia ser a pessoa perfeita para suprir a ausência de seu pai: trabalhador, honesto, religioso, um homem de princípios e valores tradicionais. “Foi, inclusive, o nosso pastor quem apresentou ele a minha mãe”, conta.


Ao começar a falar sobre o padrasto, ela se fecha em si mais ainda. Abaixa o olhar e se demonstra transtornada. A entrevista começa a ganhar ar de desabafo. Ela enfim retira a máscara que parecia estar vestindo e deixa transparecer toda a sua fragilidade, vulnerabilidade, seus medos e terrores. O nervosismo torna-se perceptível na sua voz. Ela toma fôlego, engole a seco o choro e começa a nos narrar sua história.


“Meu padrasto se mudou para a minha casa naquele ano (2002). Foi horrível (choro). Foi difícil perceber e entender o que estava acontecendo. Ele logo começou a pedir com insistência para que eu sentasse em seu colo... Quando eu estava dormindo, eu acordava no meio da noite e me deparava com ele em cima de mim”. Ao contrário do começo da conversa, agora ela não economizava palavras e fazia questão de que escutássemos o seu desabafo. Também já não se preocupava em conter o choro.

 

NOITES DE TORTURA

“Quando eu dormia, sempre colocava duas ou três roupas. Eu não entendia muito o que ele estava fazendo, mas doía de uma forma inexplicável cada vez que ele tocava em mim. Todas as noites eu rezava para Deus e pedia para que “aquilo” acontecesse pela última vez”. Neste momento, as lágrimas escorriam sobre seu rosto, suas mãos e pernas estavam inquietas e a voz trêmula não nos poupava de nenhum detalhe.


“Ele abaixava a calça e fazia eu pegar nas ‘coisas’ dele. Ele enfiava o dedo ‘dentro de mim’. Eu trancava a porta do meu quarto e a minha mãe brigava comigo”. Viviane lamenta ter sido a escolhida por Deus para não ter direito a ser criança. “Eu organizava na estante do meu quarto as minhas bonecas e ursinhos, na tentativa de ser uma criança normal. Que idiota! À noite eu ficava olhando para o meu quartinho, para os meus brinquedos, esperando o momento em que ele chegaria e começaria a tortura. Aí só me restava esperar que ele fizesse comigo o que quisesse para eu poder dormir”, queixa-se.

 

PEDIDO DE SOCORRO

“Lembro-me de uma vez, quando eu tinha 11 anos, de começar a sangrar muito nas partes íntimas porque ele tinha colocado o dedo ‘dentro de mim’, me machucando bastante. Fiquei três dias sangrando. Pensei que fosse morrer”, relembra. Em seguida, ela continua a narrar os episódios. “Houve uma época, no início, em que eu dormia na cama de casal, entre minha mãe e meu padrasto. Ele esperava minha mãe dormir e começava a e me ‘cutucar’. Não consigo nem dizer tudo o que ele fazia comigo, é tão horrível que é como se meu cérebro bloqueasse essas memórias. Eu, por várias vezes, tentei inutilmente acordar minha mãe para que ela visse o que estava acontecendo. Mas ela nunca me escutou, sempre ignorou cada pedido meu de socorro. Uma pessoa com a mão nojenta em cima de você, te fazendo você parecer a sua esposa. Eu implorava para a minha mãe para ela me ajudar (continua chorando bastante)”. O descrédito da vítima é algo comum em casos de abusos intrafamiliares. Com Viviane não foi diferente. A mãe, a família, o delegado, o pastor, os amigos, a sociedade, preferiram não escutá-la e acobertaram covardemente os crimes cometidos por ele contra ela.

 

FEMINISMO

O ano é 2018. Viviane hoje é formada em história e está cursando pedagogia. Ela já leciona em uma escola infantil, é casada e tem três filhos. Feminista ativa, ela agora é defensora dos direitos das mulheres e se dedica ao combate desse tipo de crime. “Conhecer o feminismo me libertou, me ajudou a tornar mais leve o peso das culpas que eu carregava comigo. Quando todo mundo virou as costas para mim, inclusive minha mãe, as únicas que me apoiaram foram as mulheres do movimento”. Apesar da vida aparentemente normal, as doenças psíquicas desenvolvidas pós abusos ainda interferem na sua realidade quotidiana. “Você começa a ter nojo do seu corpo. 


Não consigo usar saia, shorts. Eu tive bulimia, eu tentei me matar. Me sinto como se eu não fosse nada, não tivesse nenhum valor”. Neste momento ela para de falar e fica calada. Alguns segundos depois o silêncio é interrompido repentinamente pelo seu choro.


Viviane ainda tem pesadelos com o padrasto, dorme com um canivete embaixo do travesseiro e apresenta dificuldades para se relacionar com as pessoas. Os traumas que ainda refletem na sua vida são tantos. Já seu padrasto, assim como o pai de Cecília, nunca será julgado e punido pelos crimes que cometeu contra a enteada. Atualmente, ela procura transformar a sua dor em luta para ajudar outras meninas. “Eu dou aula para crianças de 8 a 12 anos. Sempre estou atenta a qualquer indício de violência ou abuso. Tento passar para elas muito mais que simples conteúdos de história, tenho um papel social a cumprir. Quero que eles não sejam alienados pela religião como aconteceu com a minha mãe. Eu quero que essas meninas saibam que elas têm voz, quero formar cidadãos conscientes e politizados”, finaliza.


DADOS

Para termos uma dimensão desse crime, seguem abaixo dados estatísticos referentes à estupros ocorridos nos municípios de Fernandópolis e Santa Fé do Sul de 2002 a abril de 2018.

Fonte: SSP SP



Fonte: SSP SP



Como observa-se nos gráficos, houve um aumento significativo nos casos de estupro nos últimos anos. Os dados devem ser interpretados com prudência, pois estão sujeitos a uma série de limites de validade e confiabilidade: eles são antes um retrato do processo social de notificação de crimes do que uma reprodução fiel do universo criminal de um determinado local. Para que um crime de estupro faça parte das estatísticas oficiais é necessário que ele seja notificado às autoridades competentes, o que na maioria dos casos não ocorre. A violência sexual sofrida por Viviane no ano de 2002 em Fernandópolis, por exemplo, não chegou a ser contabilizada. A situação é preocupante sobretudo porque os números desse tipo de violência podem ser maiores, haja vista que o abuso ocorre de forma velada e, na maioria das vezes, não é relatado às autoridades, dificultando assim as estatísticas. Não pode-se, portanto, concluir que houve de fato um incremento nos casos de estupro. Existe a hipótese de que talvez apenas tenham aumentado as denúncias, em decorrência de uma possível maior conscientização sobre o tema.


O PROBLEMA SEGUNDO DIFERENTES PONTOS DE VISTA

Jairo de Freitas, Ex Delegado da Delegacia de Defesa da Mulher de Fernandópolis, comenta os casos acompanhados por ele enquanto responsável pela DDM. Segundo ele, dos 26 casos de estupro registrados no município no ano de 2016, apenas 2 eram de autoria desconhecida, o que comprova que a maioria dos crimes é cometido por pessoas conhecidas ou da própria família da vítima. “O que eu vejo na delegacia são casos em que a relação de parentesco é, quase sempre, de avô-neta, pai-filha e a vítima possui idade entre 9-13 anos. Casos como esses me deixam chocado, é preciso ter ‘sangue de barata’ para trabalhar como delegado na DDM”, relata.


O ex-responsável pela Delegacia de Defesa da Mulher de Fernandópolis, Ademir Gasques Sanchez Júnior, também comentou o aumento recente dos casos. “A maioria das vítimas, quando se trata de crimes sexuais, sente vergonha de expor a situação. Acredito que o tema venha ganhando destaque na mídia e as vítimas podem estar se sentindo encorajadas a realizar a denúncia e isso explicaria esse aumento nos últimos anos”, argumenta.

 

RAÍZ SOCIOLÓGICA

De acordo com a socióloga, professora universitária e integrante de movimentos políticos e sociais, Lenina Vernucci, o estupro sempre existiu. Ela acredita que talvez seja um daqueles fenômenos que chamamos de “fato universal”, ou seja, algo que acontece em todas as culturas, embora em dimensões diferentes. “Não trata-se de um problema recente, o que é recente é a visibilidade que o tema ganhou. Acredito, por exemplo, que não aumentaram os casos de estupros em si, mas as possibilidades de denúncias. Hoje, as mulheres têm mais lugares para fazer a denúncia do que se tinha antes. Na história o estupro já foi utilizado como arma de guerra. Isso prova que não é algo recente e exclusivo da nossa sociedade brasileira”, explica.


DESCRÉDITO DA VÍTIMA

Ela salienta que quando o assunto é estupro e violência contra a mulher a sociedade tem muita dificuldade em acreditar na vítima. “Primeiro porque a nossa sociedade tende, nesse caso, a colocar a vítima como culpada. Se aconteceu é porque elas não eram inocentes, provocaram, estavam seduzindo... Ao contrário do estuprador, que tende a ser vitimizado pela sociedade: ‘Nossa, mas seu pai/avó era uma pessoa tão boa’. Portanto coloca-se o criminoso como uma pessoa boa e duvida-se do caráter da vítima”. Lenina lembra que a criança ou adolescente, no caso do abuso sexual, recebe ainda menos crédito que uma mulher adulta. “A sua palavra não tem nenhum peso. Além disso, é muito mais fácil colocar medo em uma criança ou adolescente e manipulá-la”.


QUEM É O ESTUPRADOR?

Ela fala também sobre a desumanização da mulher. “Como a mulher não tem um espaço tão grande e o poder de fala menor em relação aos homens, as pessoas não acreditam tanto nelas. Muitos desses criminosos não são violentos em geral, são simplesmente homens que não entenderam que qualquer pessoa, independente de idade e sexo, tem o direto de dizer não e rejeitá-lo, tanto é que demorou muito para o código criminal brasileiro considerar como crime o estupro marital. O homem é acostumado a ser servido e recebe essa cultura hereditária há anos. Devemos parar de pensar que o estuprador é uma pessoa louca ou com problemas psicológicos. Na verdade, ele é só uma pessoa que foi educada pensando que o homem é superior a mulher e ele tem o direito de posse sobre ela”, argumenta.


CULTURA MACHISTA E ESTUPRO

A socióloga explica que existe uma relação direta entre a cultura machista e o estupro. “O estupro é um comportamento não pertencente a natureza do homem, mas algo que foi construído ao longo desses anos. Assim como as mulheres também crescem achando que é normal ser submissa ao homem. Tudo o que a gente cresce vendo, principalmente comportamento de pessoas de nossa família, as quais amamos e confiamos, se torna normal e aceitável. A mesma coisa acontece com o estupro, ele não é natural, mas é naturalizado”.


SENTIMENTO DE CULPA

A psicóloga Dayana Sanchez, especialista no atendimento de mulheres vítimas de violência doméstica fala sobre o sentimento de culpa da mesma. “A nossa sociedade é formada por valores patriarcais, machistas, nos quais a mulher, mesmo com toda a sua emancipação, ainda é vista como propriedade, como instrumento para satisfazer o sexo masculino. Tudo aquilo que é tido como feminino tem uma conotação pejorativa, inferior. Isso contribui para a banalização da violência de gênero e consequentemente da culpabilização das vítimas que acabam carregando consigo esses sentimentos. Uma sociedade que julga o estupro pelo tamanho da roupa, pelo horário que a mulher andava pela rua, que ensina o homem a se portar como uma espécie de macho alfa e que ensina a mulher a se comportar, ensina as mulheres a carregarem a culpa pelo o que ocorre com elas”, expõe.


FALTA DE APOIO

Conforme a sua experiência, o apoio da família é mais fácil quando o agressor é desconhecido. “As pessoas têm uma dificuldade de aceitar quando o agressor é alguém que é próximo, alguém em quem se depositou a confiança, alguém em quem se depende seja financeiramente ou emocionalmente. Assim, acaba sendo mais fácil negar a realidade, culpabilizar a vítima do que encarar a situação como ela é. A dinâmica emocional de uma família que vivência uma situação de violência doméstica é pautada por uma atmosfera patológica, por conflitos, segredos, culpabilizações, alianças”.

 

CONFLITO EMOCIONAL

Ela explica também que quando o agressor é uma pessoa da família e quanto mais jovem a vítima mais confusa é a relação. “A vítima muitas vezes cria uma relação de amor e ódio, amor por ser um membro da família, alguém que se tem afeto por decorrência dos laços sanguíneos e afetivos, mas também o ódio decorrente das agressões físicas, sexuais, verbais. E o agressor muitas vezes se aproveita justamente desse conflito emocional da vítima para continuar perpetrando a violência. Isso é muito comum quando a vítima é criança ou adolescente. Ao contrário do que as pessoas pensam, no caso de crianças e adolescentes, o agressor não utiliza da agressividade, mas sim, da manipulação, da sedução, da conquista da vítima”, ressalta.


Segundo ela, a importância da mãe ou responsável é vital. “O apoio da família é a chave para a superação. Se sentir amado, protegido, ser ouvido, sentir que há esse suporte é essencial. Crianças e adolescentes que não possuem esse suporte da família são aquelas que terão maior probabilidade de consequências negativas, que terão maiores dificuldades de lidar de uma forma saudável com o trauma”, finaliza.

Os casos de Cecília e Viviane são, infelizmente, apenas dois dos incontáveis casos que quotidianamente acontecem ao nosso redor. Trata-se de um mal invisível para o qual fechamos os olhos. Cecília pode ser sua vizinha de casa, Viviane pode ser a filha da sua amiga. Assim como as vítimas, os criminosos também estão soltos pelas ruas e estão inseridos nos mais diferentes setores da sociedade. Talvez o pai de Cecília seja o porteiro do seu prédio. Talvez o padrasto de Viviane seja o proprietário de um restaurante que você frequenta.


Cecília e Viviane pretendem, por meio desta reportagem, evitarem que outras meninas tenham suas infâncias ceifadas. Falar abertamente sobre o tema para incentivar a denúncia e, desta forma, punir os criminosos é a melhor maneira de combater esse mal.

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