Zé Renato
O século XIX, no seu final, Nietzsche produziu um belíssimo aforismo — aqui no Brasil, publicado como apêndice da obra Genealogia da Moral— conhecido como “A Morte de Deus”.
Muito citado, pouquíssimo lido, mais incompreendido ainda, o texto fala em tom quase profético — perdoem-me a hipérbole provocativa — de morte. Todavia, não de Deus, da razão.
A razão, símbolo da elucidação, do esclarecimento, da luz contra as trevas. Luz do renascimento das ciências e das artes, da separação legítima de Filosofia e Teologia, à qual a primeira esteve presa durante a Idade Média e o domínio da Igreja Católica. Desvelo da dicotomia entre fé e razão, ciência e religião. Instrumento de debate e reflexão, enfim, da dialética.
Essa separação começa a se constituir na modernidade com Descartes. O filósofo francês retoma Platão, Parmênides de Eleia, por exemplo.
Logo após, Francis Bacon publica o NovumOrganum, obra com a qual recupera os princípios iniciados por Aristóteles — a partir do qual o filósofo inglês, John Locke e David Hume elidiram os princípios do empirismo.
Um rico debate entre os defensores do racionalismo — “A razão é a capacidade de distinguir o verdadeiro do falso” (Descartes) — e os apologistas do empirismo — “O conhecimento provém da experiência” (Locke).
Coube ao germânico Kant apartear a contenda, por meio da fundamental Crítica da Razão Pura, de 1781. Na obra citada, o filósofo afirma não se tratar nem do racionalismo, muito menos do empirismo. Todavia, de ambos. Isto é, para ele o conhecimento provém da experiência, sim, porém, é apreendido por nossa razão; logo, passa a fazer parte de nosso repertório, que trazemos a priori. Somado ao seguinte, obtido por meio da experiência, que dizer, a posteriori.
Pronto!
Rico debate.
Ninguém matou, ninguém morreu.
Não havia petralhas, coxinhas e bolsominions. Havia intelectuais. Gente disposta a aprender. Para isso, sabiam — de sábios — OUVIR, PENSAR, REFLETIR, DISCUTIR. Sem agressões e desconsiderações baixas.
Perdoem-me a pequena desviada. Era necessário.
Volto ao tema.
O idealismo de Kant encorpou-se de Schelling, Fichte e finalmente Hegel. Pronto, estava edificada a Filosofia Clássica Alemã.
Hegel construiu uma obra cuja riqueza se fez constatar rapidamente: jovens hegelianos passaram a difundi-la.
Outro germânico — Marx — passou a estudá-la. No entanto, refletiu-a inversamente — nos dizeres de Engels: “Recolocou a cabeça sobre seus pés” —, que dizer, se para Hegel “o racional é real”, para Marx e Engels “o real é racional”.
Dito em outras palavras: para o idealismo, a ideia constrói a realidade. Os materialistas, ao contrário, defendem a tese que é a realidade que produz a ideia.
Insisto: debate. Dialética. Razão.
No mesmo século XIX, Auguste Comte, francês, apresentou sua Filosofia Positiva, sob o argumento de que “as demais eram negativistas”. Em nome do princípio da “manutenção da ordem e do progresso”, elidiu um pensamento, resumidamente, pautado na ideia de que as ciências redimiriam o mundo das mazelas provocadas pelos devaneios.
O Positivismo impregnou o mundo.
No Brasil não foi diferente. O lema “Ordem e Progresso” que consta na bandeira brasileira foi posto no período republicano, portanto, posterior a sua confecção, em face da influência do pensamento de Comte.
Evidente, não estou a menosprezar a obra de Comte. Nem tenho poder para isso. No entanto, permito-me discordar com veemência.
Em nome da Ciência e do Progresso, quantas atrocidades não se cometeram e se cometem?
O que é o progresso?
Desenvolvimento científico e tecnológico? Para quantos?
Qual o custo em vidas desse tal desenvolvimento?
Não deve haver um balizamento ético?
Que pode trazer esse parâmetro?
Ocupei-me com a reflexão exposta, em face de entrevista lida na Folha de S. Paulo, em junho, concedida pelo médico português António Coutinho, responsável por um instituto considerado de ponta.
Óbvio, disse maravilhas da ciência.
Emendou o seguinte comentário:“Por isso filosofia não é ciência, porque nunca progride. Eu tenho o maior respeito pelos filósofos, porque o objetivo da filosofia é o mesmo que o da ciência: explicar o mundo e a nós próprios. Agora, nós temos um bom processo e eles não têm, portanto estão fadados a desaparecer. O que é o objetivo da filosofia vai ser resolvido pela ciência, e a filosofia vai passar a história.”
Primeiro: a Filosofia desde a modernidade começou o divórcio com a ciência. A separação consensual ocorreu com o Iluminismo. Muito embora Galileu, ao construir o método científico, já tivesse apresentado o pedido.
Não sei, confesso, o ele quer dizer com “nós temos um bom processo”?Não estará o médico português rendendo-se aos “encantos” de Comte?
O “objetivo da Filosofia” é por demais subjetivo, na medida em que falamos em Filosofias, são vários os filósofos. Cada qual tem a sua.
A Filosofia já está na história: é o saber que deu origem a todos os saberes e ciências existentes. No Ocidente e no Oriente.
A Ciência está a busca da resposta de uma reflexão filosófica, feita na Grécia Clássica, pelos primeiros filósofos: “Quais são as causas primeiras do universo?”
Nunca a Filosofia teve a petulância de se intitular maior que as Ciências. Sempre as tratoucom respeito, no entanto, apresentando diferentes abordagens de um mesmo problema.
Ninguém é maior ou menor. Somente diferentes.
Sobre a singularidade das ciências naturais em relação a outras formas de ser e de estar no mundo - como perguntam os jornalistas Alberto Nóbrega e Cristina Caldas, diz o cientista: “O exercício de derivar, racionalmente, as leis fundamentais que organizam o mundo. Se descobrimos essas leis, sabemos como o mundo funciona e como nós próprios funcionamos. Eu acho que a singularidade está totalmente baseada na racionalidade, e isso é muito novo. Em geral, a humanidade tentou de forma predominante perceber as coisas ou pela mágica, ou pela religião.”
Quem começou a buscar essas leis? Os filósofos gregos clássicos no Ocidente.
Chineses e hindus faziam-na no Oriente.
Afirmar somente a “racionalidade” é cometer grave erro, a meu ver. Ignorar a percepção?
Também devemos jogar no lixo a Psicologia?
E a percepção por meio da Estética?
Ao concluir o parágrafo dizendo que “a humanidade tentou de forma predominantemente perceber as coisas ou pela mágica, ou pela religião”, é no mínimo preconceituoso, talvez ignorante.
Os filósofos não apresentaram propostas? Sim, proposições, não dogmas.
Filosofia e religião são a mesma coisa? Talvez minha capacidade cognitiva tenha me traído.
Filosofia não é magia! É pensamento rigoroso.
Esse tom jocoso e até debochado do patrício fez-me recordar de Karl Jaspers: “A filosofia entrevê os critérios últimos, a abóbada celeste das possibilidades e procura, à luz do aparentemente impossível, a via pela qual o homem poderá enobrecer-se em sua existência empírica. A filosofia se dirige ao indivíduo. Dá lugar à livre comunidade dos que, movidos pelo desejo de verdade, confiam uns nos outros. Quem se dedica a filosofar gostaria de ser admitido nessa comunidade. Ela está sempre neste mundo, mas não poderia fazer-se instituição sob pena de sacrificar a liberdade de sua verdade. O filósofo não pode saber se integra a comunidade. Não há instância que decida admiti-lo ou recusá-lo. E o filósofo deseja, pelo pensamento, viver de forma tal que a aceitação seja, em princípio, possível.
Mas como se põe o mundo em relação com a filosofia? Há cátedras de filosofia nas universidades. Atualmente, representam uma posição embaraçosa. Por força da tradição a filosofia é polidamente respeitada, mas, no fundo, objeto de desprezo. A opinião corrente é a de que a filosofia nada tem a dizer e carece de qualquer utilidade prática. É nomeada em público, mas existirá realmente? Sua existência se prova, quando menos, pelas medidas de defesa a que dá lugar. A oposição se traduz em fórmulas como: a filosofia é demasiado complexa; não a compreendo; está além de meu alcance; não tenho vocação para ela; e, portanto, não me diz respeito. Ora, isso equivale a dizer: é inútil o interesse pelas questões fundamentais da vida; cabe abster-se de pensar no plano geral para mergulhar, através de trabalho consciencioso, num capítulo qualquer de atividade prática ou intelectual; quanto ao resto,bastará ter “opiniões” e contentar-se com elas. A polêmica torna-se encarniçada. Um instinto vital, ignorado de si mesmo, odeia a filosofia. Ela é perigosa. Se eu a compreendesse, teria de alterar minha vida. Adquiriria outro estado de espírito, veria as coisas a uma claridade insólita, teria de rever meus juízos. Melhor é não pensar filosoficamente. E surgem os detratores, que desejam substituir a obsoleta filosofia por algo de novo e totalmente diverso. Ela é desprezada como produto final e mendaz de uma teologia falida. A insensatez das proposições dos filósofos é ironizada. E a filosofia vê-se denunciada como instrumento servil de poderes políticos e outros muitos políticos veem facilitado seu nefasto trabalho pela ausência da filosofia. Massas e funcionários são mais fáceis de manipular quando não pensam, mas tão somente usam de uma inteligência de rebanho. É preciso impedir que os homens se tornem sensatos. Mais vale, portanto, que a filosofia seja vista como algo entediante.”
A morte prenunciada por Nietzsche é a morte da razão esclarecida, do desvelamento, da elucidação, em nome do fundamentalismo, da produção de dogmas em detrimento do debate. É o tempo “profetização” das verdades definitivas.
O cientista português não parece um exemplo disso?
António Coutinho. O médico imunologista português