Quando foi promulgado, por decreto-lei há 78 anos, o Código de Processo Penal refletiu a ditadura do Estado Novo e trouxe dispositivos que ofendem o amplo direito de defesa, mas têm resistido às alterações introduzidas na legislação penal do Brasil mesmo nos períodos de reconquista democrática, como os iniciados em 1945 e 1985. Entre essas deformidades jurídicas destaca-se o artigo 385 do CPP, que autoriza o juiz a condenar, na ação penal pública, mesmo que o Ministério Público reconheça a inocência e peça a absolvição do réu.
Estigmatizado pela consciência jurídica nacional, o artigo 385 passou incólume pelo “pacote anticrime” recém-aprovado no Congresso Nacional, omissão que caracterizou a perda de mais uma oportunidade de se remover tal nota destoante do nosso ordenamento jurídico, em que se acha acolhido o sistema acusatório (no qual somente ao Ministério Público incumbe a pública acusação). Remanesceu, no entanto, a possibilidade do debate, e operadores do Direito têm revivido a controvérsia que se estabeleceu pelo cotejo do artigo 385, que admite a desistência da acusação, e o artigo 42, segundo o qual “o Ministério Público não poderá desistir da ação penal”. Trata-se, em verdade e ao fundo, de celeuma entre correntes do Direito Penal. De um lado, a linha inquisitorial, que sustentou a vigência do artigo 385; de outro, o processo penal de estrutura acusatória, albergado na Constituição de 1988, a qual, portanto, não recepcionou o artigo superado.
Como é natural, a tendência orgânica do MP, sustentada pelo dever de ofício, é demonstrar completamente a tipificação de crimes e apontar autores, seguindo a determinação do artigo 41 do CPP: “A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas”. Embora ordinariamente não ocorra com frequência, ao fim da ação penal, pedido de desistência da acusação, existem exceções, diante de casos flagrantes de inculpabilidade do réu apurada durante a tramitação da persecução criminal, quando, por exemplo, testemunhas atestam sua inocência e desmontam o arenoso castelo de culpa construído no início, de forma provisória, sem a certeza plena da responsabilidade.
Tais exceções tornam inaceitável o comando do artigo 385 do CPP por conceder ao magistrado o poder de menoscabar a renúncia por parte do MP - dominus litis - à acusação, e, movido por supostas convicções que não encontram respaldo nos autos e nas manifestações das partes, condenar o acusado já declarado inocente por quem menos se esperava e a quem cabe a acusação. É o julgador-acusador redivivo... É matéria de obviedade flagrante, própria ao Conselheiro Acácio, reconhecer que, se quem tema missão de acusar admite que o réu não cometeu crime, resulta um contrassenso manter ao arbítrio do magistrado o poder da condenação, atuando como juiz-acusador, como nos ritos autocráticos da Inquisição – e, o que não é menos grave, assumindo o papel que o MP se recusou a desempenhar.
Em rigor, tal possibilidade agride o princípio da imparcialidade do magistrado, que, condenando, faz uma escolha pessoal à revelia das competências que lhe estão distribuídas na Constituição, usurpando prerrogativa que é do MP, titular formal da pretensão punitiva – pois seguramente não há maneira de aceitar demonstrada a autoria de um delito senão pelas alegações do parquet, decorrente da prova produzida. A sentença é fruto do cotejo da acusação (tese) e da defesa (antítese), e se a primeira se exime de sustentar a procedência da denúncia, em razão da ausência de lastro fático que a possa validar, a única conclusão (síntese) cabível ao magistrado é a absolvição do réu. Como ainda diria o Conselheiro Acácio, inexistindo acusação e, portanto, provas de autoria, não pode haver jamais condenação.
*Ricardo Toledo Santos Filho, vice-presidente da OAB São Paulo