Enquanto estou a escrever, “Black and Blue” toca ao fundo. A rouquidão da voz, além de soar cristalina, inebria, enche de êxtase o ambiente. Ao entrar em cena, seu velho e genial Selmer preenche qualquer vazio ou tédio. É poesia em estágio máximo. Apolo e Dionísio bailam para além do homem. A música carrega em sua letra uma carga da poética de Cruz e Souza: a dor de ser negro. Dor? Ou será orgulho e reafirmação?
Há 120 anos, nasceu Louis Armstrong. Justamente em New Orleans, terra da cultura creole, berço do jazz, do dixieland. O racista sul dos Estados Unidos. Percorrido por Armstrong, em constantes deslocamentos até o Mississippi, gênese do blues.
É desta simbiose que começamos a falar: a música do gênio Louis Armstrong carrega consigo uma síntese do movimento espiralado da História. Quase um embate dialético entre o blues e o jazz. Satchmo - apelido de Armstrong - operou esta síntese, potencializando a dor do blues, as ricas harmonias do jazz a um grau de qualidade cuja obra personifica um sinônimo de ritmo. Jazz e Armstrong são a mesma coisa. Um é parâmetro para o outro.
Inegavelmente, King Oliver, Sidney Bechet, dentre tantas divindades, podem e devem ser adicionados ao panteão de suas referências. Porém, Armstrong sintetizou-os e foi muito além. Sua música conserva as raízes do jazz e do blues, mas traz consigo um toque único e planetário. Louis não é só o jazz. Louis é a música. Ouso dizer que “La Vie en Rose” é mais bela em sua voz.
De uma infância miserável, sofrida até a conquista da justa glória, tem em sua história todos os elementos que forjam a vida das canções que executava.
Na bela obra de Ken Burns há uma passagem na qual um estudante de direito declara que se encantou e se transformou ao tomar contato com a música de Louis Armstrong. Mais tarde, formado, torna-se juiz. Ao julgar um caso, nitidamente um negro acusado, injustamente, por questão do racismo, ele o absolve, afirmando: “Quando Louis Armstrong toca, os anjos choram.”
Armstrong tem a sensibilidade de encantar, de produzir a estética, a aisthésis, como somente os gênios o fazem. Como Van Gogh nas telas, Goethe na prosa, Camões na poesia, Michelangelo na escultura. Assim é o grande Louis, um esteta da música.
A dor de ser negro, por razões óbvias - uma humanidade falha e desumana, o racismo -, deixa de sê-lo, para se tornar orgulho, graças também à arte de Louis Armstrong. Combatente do racismo, de toda e qualquer segregação, se impôs pelo talento e genialidade. Elevando o jazz à justa estatura de música de primeira grandeza.
Há outros grandes nomes neste firmamento de gênios. Porém, Armstrong é a síntese. Dividiu-o em antes e depois dele.
Somente ele faz os anjos chorarem. Sua música é contundente, áspera, lírica e doce a um só tempo. Novamente, Apolo e Dionísio em festa.
Não celebramos sua morte. Ainda que, infelizmente, faça cinquenta anos que nos deixou. Celebremos, sempre, sua gênese! Precedida para a eternidade. Lugar de honra e de direito das divindades.
Continue a fazer os anjos e a nós chorarmos, de êxtase e felicidade, no pleno exercício estético, daquilo que a arte tem de mais nobre e imortal e que jamais será maculado.
Black and Blue. Black is beautiful. Black and glory. Black is Armstrong.