ARTIGO

O ANORMAL NORMALIZADO: retrato de um país que estupra 180 vítimas por dia

O ANORMAL NORMALIZADO: retrato de um país que estupra 180 vítimas por dia

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Publicada há 3 anos

A interpretação dos comportamentos humanos, abusivos, não naturais, mas naturalizantes está condicionada à cultura. É o que ocorre com a cultura do estupro que contempla formas pelas quais a “sociedade culpa as vítimas de assédio ou abuso sexual e normaliza o comportamento agressivo dos homens”. Estimulada por uma sociedade machista e patriarcal, a cultura do estupro inferioriza a mulher vista apenas como um objeto, no “intuito de servir o sexo masculino, sem o direito de ter desejos, ambições ou realizações próprias”, legitima, naturaliza e banaliza a violência contra a vítima (GASPARETO et al., 2018, p. 2), normaliza atitudes e costumes ao considerar “normal” o que é anormal, tentando desvalorizar o comportamento da vítima para justificar o comportamento do agressor (SANTOS; ALVES, 2015).

Para Sousa (2017, p. 13), a “cultura do estupro [é] o conjunto de violências simbólicas que viabilizam a legitimação, a tolerância e o estímulo à violação sexual”. Alda e Silveira (2018, p. 133) registram que se vive uma “cultura excessivamente permissiva em relação ao estupro e em uma época que exige o uso da expressão cultura do estupro”, denotando a ideia de que a “agressão masculina e a violência contra as mulheres [e vulneráveis] são aceitáveis e, muitas vezes, inevitáveis”.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019 registrou 66.041estupros em 2018,ou 180 eventos/dia, o maior número já registrado, sendo 81,8% do sexo feminino, 53,8% tinham até 13 anos, 50,9% eram negras, 48,5%, brancas e 4 meninas de até 13 anos estupradas por hora. Em 88,8% dos casos o autor foi o companheiro ou ex-companheiro (BUENO; LIMA, 2019); 70% tinham sofrido violência física do parceiro íntimo antes do assassinato, e mais de 70% dos estupros vitimizaram crianças e adolescentes (CERQUEIRA; COELHO, 2014). Em geral, 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima, isto é, o estuprador está, na maioria das vezes, dentro de casa (CERQUEIRA; BUENO, 2020). 

Alda e Silveira (2018) afiançam que cerca de 30% da população concordam que roupas provocantes insinuam um convite ao estupro. Entre a população masculina, 42% dos homens afirmam que mulheres que se dão o respeito não são estupradas e um em cada três brasileiros acredita que, nos casos de estupro, a culpa é da própria vítima. Em torno de 50% dos estupros ocorrem por meio do uso de força física, ameaça ou espancamento, e quase 84% dos estupradores são conhecidos das vítimas – números tristes que sustentam uma “cultura do estupro” no país, com perfis de mulheres exploradas, objetificadas e violentadas, ou de infantes vulneráveis (CERQUEIRA; COELHO, 2014; ALDA; SILVEIRA, 2018).

Ao analisarem os dados sobre estupro, Bueno e Lima (2019) verificaram que 63,8% dos delitos são cometidos contra vulneráveis, crime que tem como vítima pessoa menor de 14 anos, juridicamente considerada incapaz para decidir sobre o ato da relação sexual, ou incapaz de oferecer resistência, ou, independentemente da idade, pessoa sob efeito de drogas, enferma ou com deficiência (BRASIL, 2009).

Embora “causem certo impacto, esses dados ainda podem representar apenas uma parte da realidade, já que parcela considerável dos crimes relacionados à violência doméstica não chega a ser denunciado” (BRASIL, 2018, p. 64). Assim, as estatísticas sobre estupro e atentado violento ao pudor, tentados ou consumados, podem ser mais alarmantes e, embora seja crime hediondo tipificado na Lei 8.072 (BRASIL, 1990), referendado pela Lei nº 12.015 (BRASIL, 2009), ainda é um “delito contraditório para grande parte da sociedade, que subverte moralidades e expõe vítimas de maneira também agressiva” (ALDA; SILVEIRA, 2018, p. 1).

O estupro refere qualquer conduta mediante violência ou ameaça grave e trata-se de crime que constrange a vítima à conjunção carnal, mesmo sem penetração que nem sempre é uma constante nos casos de violência sexual.O estupro não respeita a dignidade da pessoa e atenta contra a liberdade sexual, embora, com frequência, seja entendido apenas como ato sexual não consensual (SOUSA, 2017). Impõe-se, porém, um olhar mais amplo. A legislação classifica o estupro como o ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” (BRASIL, 2009, Art. 213).

Para Bueno, Pereira e Neme (2019, p. 114), violência sexual é “qualquer ato sexual ou tentativa de obter ato sexual, sem o consentimento da vítima [...] exercida com uso da força ou ameaça, mas também com chantagem, suborno ou manipulação”. O estupro é um dos mais brutais atos de violência, humilhação e controle sobre o corpo de outrem (mulheres, impúberes ou vulneráveis). Os “efeitos deletérios do estupro sobre a vida e a saúde [dos vitimizados] e a magnitude da sua incidência têm-se configurado como um problema de saúde pública, atingindo suas vítimas nas diversas faixas etárias, independente de classe social, raça, etnia, religião, idade e grau de escolaridade” (SUDÁRIO; ALMEIDA; JORGE, 2005, p. 80).

Segundo Bueno, Pereira e Neme(2019 p. 114), o “trauma vivenciado pelas vítimas [de estupro] deixa muitas sequelas na vida e na saúde dos atingidos, resultando em sérios efeitos nas esferas física e/ou mental, no curto e longo prazos”. Na esfera física, as “vítimas de estupro podem sofrer lesões nos órgãos genitais, contusões e fraturas, alterações gastrointestinais, infecções do trato reprodutivo, gravidez indesejada e contração de doenças sexualmente transmissíveis”.

Na esfera psicológica, o estupro ocasiona diversos transtornos como depressão, fobias, ansiedade, disfunção sexual, transtornos alimentares, abuso de drogas ilícitas, síndrome de estresse pós-traumático, ideações suicidas ou mesmo tentativas de suicídio e danos que podem ser tão ou mais graves do que os danos físicos (FAÚNDES et al., 2006). Não raro, a ausência de marcas físicas ou carência de equipamentos públicos para acolhimento e registrodo evento impedem reconhecer a agressão e, por uma “moral conservadora” e uma visão estereotipada machista, acaba-se por culpabilizar a vítima pela violência. 

Merece destacarque os crimes sexuais, em geral subnotificados, estão entre aqueles com as menores taxas de notificação à polícia, cujos motivos envolvem medo deretaliação pelo agressor, julgamento pela exposição da vítima após a denúncia, descrédito nas instituições de justiça e segurança pública, dentre outros (BUENO; PEREIRA; NEME, 2019).

Para Bueno e Lima (2019, p. 8-9), se se pretende vencer o medo e a violência, é imperativo “consolidar repositórios de informações, bem como monitorar e analisar as principais agendas de problemas e soluções existentes”, simultaneamente à geração de momentos de reflexão e debate traduzindo fluxos cada vez maiores de dados e boas políticas públicas.

Psicólogo André Marcelo Lima Pereira

Email: andremarcelopsicologo@hotmail.com

REFERÊNCIAS

ALDA, L. S.; SILVEIRA, M. E. C. “Uma a cada onze”: discutindo a cultura do estupro no Brasil. In: VII Seminário Corpo Gênero e Sexualidade, de 19 a 21 de setembro de 2018. Anais... Rio Grande do Sul, Universidade Federal do Rio Grande. Rio Grande: Editora da UFRG, 2018. 5 p.

BRASIL. Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. Diário Oficial da União, de 26/7/1990, Seção 1, p. 14303 (Publicação Original), Coleção de Leis do Brasil - 1990, p. 2447 v. 4. Brasília, DF, Presidência da República, 1990.

______. Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009.Altera o Título VI da Parte Especial do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e o art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos..., nos termos do inciso XLIII do art. 5o da Constituição Federal e revoga a Lei no 2.252, de 1o de julho de 1954, que trata de corrupção de menores. Diário Oficial da União, de 10.8.2009. Brasília, DF, Presidência da República, 2009.

______. Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Violência contra a mulher: um olhar do Ministério Público brasileiro. Brasília: CNMP, 2018. 244 p.

BUENO, S.; LIMA, Renato S. (coords). Anuário brasileiro de segurança pública 2019. In: Anais... Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ano 13, 2019. 206 p. 

BUENO, S.; PEREIRA, C.; NEME, C. A invisibilidade da violência sexual no Brasil. In: BUENO, Samira; LIMA, Renato Sérgio de (coords). Anuário brasileiro de segurança pública 2019. In: Anais... Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ano 13, 2019. p. 114-143.

CERQUEIRA, D.; BUENO, S. (coords.). Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Atlas da violência 2020. Brasília: IPEA; Ministério da Economia, 2020. 96 p

CERQUEIRA, D.; COELHO, D. S. C. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde (versão preliminar). Nota Técnica n. 11. Brasília, DF: IPEA, mar. 2014.

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FAÚNDES, A.; ROSAS, C., BEDONE, A.; OROZCO, L. (2006). Violência sexual: procedimentos indicados e seus resultados no atendimento de urgência de mulheres vítimas de estupro. Rev Brás Ginecol Obstet., v. 28, n. 2, p. 126-135, 2006.

GASPARETO, A. C. S.; REIS, J. C. P.; PAES, M. F.; AMARAL, N. C. C.; BOTÃO, P. R. A cultura do estupro nas revistas IstoÉ e SuperInteressante.In:Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação; XXIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste, de 7 a 9 de 2018. Anais... Belo Horizonte, MG, 2018. 13 p.

SANTOS, M. M. H.; ALVES, R. F. A cultura do estupro: banalização e visibilidade de mudanças através dos tempos. Ciência et Praxis, v. 8, n. 16, p. 51-55, 2015.

SOUSA, R. F. Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 25, n. 1, p. 9-29, jan./abr. 2017,

SUDÁRIO, S.; ALMEIDA, P. C.; JORGE, M. S. B. Mulheres vítimas de estupro: contexto e enfrentamento dessa. Realidade. Psicologia & Sociedade, v. 17, n. 3, p. 79-86, 24 nov. 2005.

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