Os dois semblantes

Os dois semblantes

Menino Jesus ou Judas Iscariote?

Menino Jesus ou Judas Iscariote?

Publicada há 2 anos

MINUTINHO

Omissão

Por: José Luiz Borges

Se eu pudesse viver novamente a minha vida, na próxima trataria de cometer mais erros. Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais. 

  Seria mais tolo ainda do que tenho sido, na verdade, bem poucas coisas levaria a sério. Seria menos higiênico. Correria mais riscos. Viajaria mais, contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais rios. 

  Iria a lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvetes e menos lentilha, teria mais problemas reais e menos problemas imaginários. 

  Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata e produtivamente cada minuto da sua vida; claro que tive momentos de alegria. Mas, se pudesse voltar a viver, trataria de ter somente bons momentos. Porque, se não sabem, disso é feita a vida, só de momentos, não o percas agora. 

  Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem um termômetro, uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um paraquedas; se voltasse a viver viajaria mais leve. 

  Se eu pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço no começo da primavera e continuaria assim até o fim do outono. Daria mais voltas na minha rua, contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças, se tivesse outra vez uma vida pela frente. 

  Mas, já viram, tenho 85 anos e sei que estou morrendo.

CRÔNICA

Os dois semblantes

Por: Autoria desconhecida

Certa vez, ainda na Idade Média, sob a áurea das trevas, um grande artista, dentre tantos, foi escolhido para pintar um quadro à óleo que seria utilizado para ornamental uma igreja de Roma. A tela teria por tema toda a vida de Jesus Cristo.

Assim, durante meses a fio, e sem descanso, dedicou-se o pintor à execução do quadro. Quando, porém, faltava pouco para terminar, foi forçado a parar. É que faltavam dois modelos importantíssimos, justamente aqueles que deveriam representar o Menino Jesus e o Judas Iscariote. Rapidamente o artista pôs-se a procurar, pelas ruas, pessoas que pudessem personificar, plasticamente, os dois modelos.

Começou a busca em sua própria cidade. Percorreu todas as ruas, procurou em todos os bairros. Andou muito, viajou muito. Examinou, linha por linha, centenas de rostos de meninos e de homens, sem que nenhum deles apresentasse as características que exigia para os personagens de seu quadro. Foi então que retornando a sua terra natal, percorrendo novamente um velho bairro da cidade, viu um pequeno de doze anos, com semblante de rara beleza e extraordinária meiguice. Era justamente o que procurava – concluiu.

 O pintor exultou de alegria. Enfim, poderia continuar seu trabalho. E, de imediato solicitou permissão aos pais do menino e pôs mãos à obra novamente.

Durante dias, e dias o garoto pousou pacientemente até que seus lindos traços fisionômicos passaram para a tela do pintor. Encerrada a pintura, satisfeito declarou:

- A beleza e a candura de sua alma estão refletidas em seu rosto.

Encerrada a etapa, o pintor então começou a fazer novas buscas, agora na esperança de encontrar quem lhe servisse de modelo para a imagem de Judas.

Novas caminhadas... Novas indagações... Novos semblantes em desfile... Mas ninguém satisfazia às exigências do artista. A bela obra paralisada aguardava o seu último personagem, para ser exposta aos olhares do público. E tudo indicava que tão cedo não seria terminada.

De fato os dias foram se escoando, os meses sucedendo-se um ao outro, os anos também se passaram e o quadro continuava no mesmo.

Imagem: ilustração

O pintor já desanimava, quando um dia, ao passar por um bar, pouco recomendável, viu aparecer à porta um pobre homem esfarrapado, magro, sentado ao balcão. Estava completamente embriagado. O pintor aproximou-se e condoído, estremeceu de horror e emoção. Aquela fisionomia ainda moça, porém marcada impiedosamente pelo vício, ajustava-se com precisão à sua tela inacabada! Encontrara, afinal, o seu Judas Iscariote.

- Venha comigo, que eu cuidarei de você – afirmou o pintor, que se pôs, dia e noite, a completar a tela.

E coisa estranha acontecia à medida que o trabalho avançava. O modelo, pouco a pouco, demonstrava desalentadora tristeza. O pintor percebia a transformação, mas nada comentava. Até que num dia, notando que lágrimas silenciosas deslizavam daqueles olhos encovados, interrompeu o trabalho e indagou, interessado:

- Meu filho, por que se aflige tanto? Em que lhe posso ajudar?

Desatando a chorar, o modelo cobriu o rosto com as mãos. Passados instantes, olhou para o pintor e, timidamente, falou:

 - Não se lembra de mim? Há muitos anos, pousei para o senhor. Eu era o seu menino Jesus!

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