CRIME SILENCIOS

Estupros em Fernandópolis mais que dobraram nos últimos anos

Estupros em Fernandópolis mais que dobraram nos últimos anos

Maioria dos casos ocorre dentro dos lares e as vítimas são crianças

Maioria dos casos ocorre dentro dos lares e as vítimas são crianças

Publicada há 7 anos



Por Lívia Caldeira


As imagens mais frequentes que nos vêm à cabeça ao pensar em um estuprador são de um homem à espreita, um estranho que brutalmente ataca a vítima, obrigando-a ao sexo forçado. No imaginário das pessoas, o estuprador é um indivíduo desconhecido, assustador, com distúrbio de personalidade, cruel, frio e calculista ao ponto de cometer um ato bárbaro. Seria estranho pensar que esse “monstro estuprador” é alguém conhecido ou até mesmo da própria família?


Para Dr. Jairo de Freitas, da Delegacia da Mulher de Fernandópolis, a resposta é não. “Isso é muito comum, quotidianamente chegam até a Delegacia casos de abuso sexual ou estupro em que existe uma relação de parentesco entre a vítima e o autor do crime. Geralmente, são avôs-netas ou padrastos-enteadas” relata.  Dos 24 casos de estupro registrados até o mês de Outubro no município, apenas 2 são de autoria desconhecida. O número é alarmante e vem crescendo nos últimos anos: houve um aumento de 118% em seis anos. Em 2011 foram registrados 11 casos de estupro em Fernandópolis contra 24 no mesmo período de 2016, ou seja, os casos mais que dobraram nos últimos anos.


O problema assume uma gravidade ainda maior quando a vítima de violência sexual é menor de idade. E por mais absurdo que possa parecer, grande parte das vítimas no município, possui idade entre 09 e 13 anos. Na maioria dos casos, o estupro acontece dentro do próprio lar da criança e, paradoxalmente, o autor do crime é alguém conhecido por ela, de convívio quotidiano, aquele que deveria estar cuidando, educando-a e protegendo-a.


Para a psicóloga Dayana Sanchez, que trabalha há 6 anos com vítimas de violência doméstica, as pessoas têm maior dificuldade de lidar com a situação quando o agressor é alguém que é próximo, em quem se depositou confiança. “A dinâmica emocional de uma família que vivencia uma situação de violência doméstica é pautada por uma atmosfera patológica, por conflitos, segredos, culpabilizações, alianças...”


Mais preocupante ainda, é que os números desse tipo de violência podem ser maiores, haja vista que o abuso ocorre de forma velada e, na maioria das vezes, não é relatado às autoridades competentes, dificultando assim as estatísticas. De acordo com Dr. Jairo, é muito raro que a própria criança ou adolescente, autonomamente, faça a denúncia, essa geralmente é feita após chegar ao conhecimento de professores, diretores ou inspetores da escola frequentada pela vítima.


O tema é polêmico e controverso, especialmente porque fere o conceito de “família feliz” que permeia a sociedade. A reportagem deste “O Extra.net” entrou em contato com especialistas da área para saber as razões, os motivos e as consequências deste mal invisível que atinge Fernandópolis.


O PROBLEMA SEGUNDO TRÊS PONTOS DE VISTA:


 Lenina Vernucci - Mestre em Sociologia



“Violência contra mulher é resultado de uma cultura machista” 

“A questão do estupro e da violência sexual deve ser compreendida na maneira como a sociedade entende, percebe e se organiza em torno dos direitos das mulheres. Uma sociedade historicamente patriarcal e machista como a nossa, ainda não conseguiu perceber que as mulheres têm direito sobre seu corpo, o direito de dizer não e o direito de usar qualquer roupa. Há no imaginário, na cultura, uma ideia de que algumas mulheres merecem ou pediram para que tal violência aconteça. Infelizmente, ainda falta muito para que homens (e até mulheres, por incrível que pareça) e a sociedade como um todo compreendam a necessidade de se acabar com o machismo, uma estrutura cultural e social de relação de poder que naturaliza a subjugação das mulheres pelos homens. É necessária uma educação que reconheça a igualdade e a equidade entre os seres humanos. Uma educação que reconheça o direito ao corpo, o direito à liberdade, ao trabalho justo e igual em termos de salários, entre várias outras bandeiras. Uma educação que não desencoraje as meninas a serem quem elas desejam. E que não encoraje meninos a verem nelas objetos. A luta é ampla, árdua, mas necessária e urgente!”



 Dr. Jairo de Freitas - Delegado da Delegacia da Mulher 



“Linha de pobreza e vulnerabilidade social” 

“Como fatores que contribuem ao aumento de tal crime, pode-se citar a linha de pobreza e a vulnerabilidade familiar. O que eu vejo quotidianamente na Delegacia são pessoas de baixa renda que, geralmente depois da ingestão de bebida alcoólica, cometem a violência sexual. Na maioria dos casos, a relação de parentesco é de avô-neta e a vítima possui idade entre 09-13 anos.  Casos como esses, me deixam chocados, é preciso ter “sangue de barata” para trabalhar aqui.  Assim que a denúncia chega até mim, imediatamente são tomadas todas as providências e o caso é encaminhado para a justiça. Nós não estamos aqui para brincadeira, me lembro de um caso em que o autor do crime foi condenado a 1.050 anos de prisão, acredito que a punição seja fundamental para combater esse tipo de crime. Qualquer pessoa que queira fazer a denúncia deve procurar as autoridades competentes, a Delegacia de Defesa da Mulher é aberta de segunda a sexta-feira das 7:00 as 18:30 e para os demais dias e horários, o Plantão Policial está à disposição.”



 Dr. Dayana Sanchez - Psicóloga CRP 06/97966



“A vítima se sente culpada”

“É comum a vítima se sentir culpada e é comum a culpabilização da mesma. A nossa sociedade é formada por valores patriarcais, machistas, onde a mulher ainda é vista como propriedade, como instrumento para satisfazer o sexo masculino. Tudo aquilo que é tido como feminino tem uma conotação pejorativa, inferior. Isso contribui para a banalização da violência de gênero e, consequentemente, as vítimas acabam carregando consigo esses sentimentos de culpas. Vivemos em uma sociedade que julga o estupro pelo tamanho da roupa, pelo horário que a mulher andava pela rua, que ensina o homem a se portar como uma espécie de macho alfa...  Vale ressaltar também, que apoio da família é mais fácil quando o agressor é um desconhecido. Quando o agressor é conhecido ou da própria família, como ocorre na maioria dos casos, esse apoio tende a ser mais restrito.  As pessoas têm uma dificuldade de aceitar a situação quando o agressor é alguém que é próximo, alguém em quem se depositou a confiança, alguém em quem se depende, seja financeiramente ou emocionalmente. Assim, acaba sendo mais fácil negar a realidade, culpabilizar a vítima do que encarar a situação como ela é. Quanto mais jovem a vítima, mais confusa é a relação. A vítima, muitas vezes, cria uma relação de amor e ódio, amor por ser um membro da família, alguém que se tem afeto por decorrência dos laços sanguíneos e afetivos, mas também o ódio decorrente das agressões físicas, sexuais, verbais. E o agressor muitas vezes se aproveita justamente desse conflito emocional da vítima para continuar perpetrando a violência. Isso é muito comum quando a vítima é criança ou adolescente. Ao contrário do que as pessoas pensam, no caso de crianças e adolescentes, o agressor não utiliza da agressividade, mas sim, da manipulação, da sedução, da conquista da vítima. É importante que os pais ou responsáveis conheçam bem o comportamento de suas crianças ou adolescentes para saber quando algo está errado e procurar ajuda especializada para maior orientação.”

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