Por: Zé Renato
O mundo é um moinho
Sempre lembro de Cartola. Aliás nunca esqueço. Escreveu uma letra - poesia pura - quando soube que uma de suas filhas decidira ingressar na prostituição. Não a espancou; não a renegou, apenas buscou alertá-la para o que viria por meio de seu grande ofício: o lirismo, o gênio poético.
Tenho 62 anos, sou paulistano, desde 2011 moro em Fernandópolis. Aprendi a amar a cidade que me acolheu.
Acompanho política desde menino, desde os catorze, quinze anos. Conversava muito com meu querido pai. Desde cedo lia muito e observava, refletia...
Escolhi o magistério como profissão; graduei-me em Filosofia. Intensifiquei as leituras e sofistiquei o poder de observação e reflexão. Todavia, nunca fui burro o bastante para supor que fosse dono da verdade. Apenas aprendi a defender aquilo que me convenci por meio de argumentos, observações e reflexões, sobretudo princípios éticos e morais que norteiam minha vida. Desde cedo tornei-me alguém que não aceita e não concorda com injustiças, com exclusões. Desde cedo escolhi o lado mais difícil para defender.
Nasci em 1960. Com quatro anos a completar, o Brasil mergulhava num pesadelo, do qual parecia ter saído em 1985, e que insiste em permanecer.
Cansei de ouvir pessoas dizerem que tem saudades da ditadura. Afirmam que a época era boa. Pois bem, com certeza estiveram longe da realidade. Explico-me: havia uma aparência de bem-estar, de calma, de paz. Contudo, nos subterrâneos, o horror das torturas, as perseguições e prisões arbitrárias, as torturas seguiam em frente.
Pautada numa aparente estabilidade econômica, numa ilusória era de abundância, regida - além da vio-lência estatal, do silêncio imposto, da censura - por um projeto de desmonte da educação, do conhecimento e das artes. No momento em que o mundo do capital começou a cobrar a conta de empréstimos dos petrodólares, usados em corrupção e gastos descabidos, com obras superfaturadas e inúteis, muitas não concluídas até hoje - alguém se lembra da Transamazônica? -, o Brasil da ditadura escolheu o óbvio e o comum: a conta deve ser paga pelo povo, os mais humildes, aqueles que mais sofrem. Resultado: achatamento salarial, desemprego, carestia...
A ditadura começou a abrandar depois de 1979. Em tempo: não por bondade, mas por ser insustentável e não possuir mais o apoio das potências estrangeiras.
Vieram as chamadas anistia e abertura política; toda a podridão, toda a sujeira, todo o arbítrio foram jogados debaixo do tapete. Aparentemente, tudo limpo. Todavia, levante o tapete e verificará que tudo putrefato estará lá.
Alguns esqueceram-na, outras nem souberam que houve, outros amargaram-na, contudo, de um jeito ou de outro, seguimos em frente.
Somente em 1989 pudemos escolher um presidente. Votei pela primeira num candidato com 29 anos!
Escolhi Lula. Deu Collor.
Deu no que deu.
O que quero salientar aqui é: desde 1989 até 2014 o processo eleitoral sempre foi acirrado, aguerrido. Defesa firme de seus candidatos. Debates, gritos de guerra, palavras de ordem, manifestações, comícios, até, eventualmente, xingamentos. A diferença crucial: não existia o ódio, a intolerância, o estado de guerra. Éramos adversários políticos, tínhamos discordâncias ideológicas, diferenças partidárias, diferenças de estratégias. Acreditem: depois de passeatas, comícios, panfletagens, debates, era comum militantes ou simpatizantes de partidos adversários, eleitores, se reunirem, JUNTOS, tomarem cerveja, rirem, conversarem, discutirem, debaterem, rirem novamente; fazerem piada uns com os outros, por fim, retornarem em paz para casa, na certeza de que amanhã continuariam a “batalha”.
Acabaram as eleições. A vida continuava. Discordando ou concordando. Alegre ou triste, fazendo planos para a próxima, para uma vitória enfim. Sonhando.
Finalmente, em 2002, o PT venceu as eleições presidenciais. Lula tornou-se presidente. Reeleito quatro anos depois. Depois dele, Dilma eleita e reeleita.
O que mais guardo com carinho desta época: a partir de 2003, 2004, chegava na favela para lecionar na sexta à noite. Sentia o aroma da carne assada na grelha. TODA SEXTA-FEIRA. Recordo-me de estudantes, nordestinos ou filhos dizerem alegremente que seus pais agora tinham luz elétrica, esgoto, água encanada, forno de micro-ondas, geladeira, televisão. Eles podiam comprar motos, carros, construir ou comprar uma casa.
É pouco. Sim é pouco. É o óbvio. Todavia, se for visto pelas lentes daqueles que nunca sofreram privação. Graças a Deus, sou um deles. Meu pai era bancário. Nunca tivemos muito luxo, porém, nunca nos faltou nada.
Pergunto: é justo medirmos o drama alheio - fome, desemprego, desesperança... - pelo olhar daqueles que, felizmente, nunca passaram por isso? É justo supormos que condições adversas, pobreza, miséria, exclusão, sejam naturais, escolhas divinas? Não mesmo.
Falar de fome com quatro refeições na pança é fácil.
Falar de desemprego, falta de renda, bem empregado, bem aquinhoado com renda, é fácil.
Já lhe ocorreu um mórbido exercício? Ponha-se hipoteticamente do outro lado. A isto chamamos alteridade, empatia.
A última vitória de Dilma foi intolerável para os endinheirados!
No meio de seu mandato - conquistado democrati-amente - começou a sofrer uma campanha difamatória e mentirosa. Sim, mentirosa. Confirmada recentemente, pela justiça, imprensa, classe política, enfim por todos que a derrubaram.
O país mergulhou num clima de ódio! Adversários políticos transformaram-se em inimigos de sangue.
Mentiras, (in)verdades explodiram nas ditas redes sociais. Não havia mais uma verdade, a história, mas, a MINHA VERDADE, certezas científicas, históricas e empíricas começaram a ser abandonadas por dogmas, mentiras ditas como se fossem verdades, sem nenhuma prova senão minha crença de que aquilo que me era jogado era a nova verdade. Criou-se a expressão: era da pós-verdade.
O circo de horrores estava armado. Um ser obscuro politicamente, sem preparo, conhecimento e compromisso com o povo, cuja vida pública era marcada por declarações estapafúrdias e tresloucadas; defensor da ditadura, das torturas; racista, misógino, homofóbico; aporofóbico (aquele que odeia pobres), foi elevado à categoria de mito. Sem nenhuma proposta, sem nenhuma verdade. Vociferava ódio, e escárnio a todos aqueles que lhes eram contrários, agora transformados em inimigos.
Deturpou o conceito de pátria ou patriotismo; produziu e reproduziu mentiras; com auxílio de endinheirados e supostos religiosos, construiu um exército de fanáticos, para os quais, não há verdade, não há História, não há Ciência, não há lógica, não há crença, não há religião, a não ser aquelas que sejam despejadas pelo gabinete do ódio ou pelas tias do zap.
Eleito. O Brasil voltou ao mapa da fome. São mais de trinta milhões de semelhantes nossos vivendo em estado de miséria. Cortes na Educação, na Saúde, na Cultura. Desemprego explodindo. O preço dos alimentos chega ao absurdo. Olhem o preço da banana, do tomate, da alface...
Visivelmente, a população, mesmo os assalariados, empobreceram. Basta recordar qual era sua situação há quatro ou cinco anos. Com cem reais daquela época o que se faz hoje?
Veio a pandemia. Assistimos a um espetáculo macabro! Quase setecentas mil vidas ceifadas. Enquanto isso, o mito fazia piada, galhofa. Imitava um semelhante sofrendo e morrendo com falta de ar. Recusou-se a comprar vacinas. A não ser que fosse num esquema, denunciado pela CPI da covid e engavetado pelo seu servo, o procurador (na verdade escondedor)-geral da República.
Insiste em vagabundear, passear de motos, gastar indecentemente o tal cartão corporativo de forma vergonhosa e ofensiva ao povo que sofre.
Em tempo: por que será que ele é incapaz de responder uma simples pergunta: quais foram as grandes realizações de seu governo?
Mente, distorce, vocifera, xinga, mente, esperneia, ofende, acusa o STF, a imprensa, a “esquerdalha” e não diz nada. Sabem por quê? Não há o que responder. Não há uma obra sequer. Para existir, precisaria ter trabalhado. Não o fez.
O possível ou a possível leitora devem indagar: qual a razão de escrever tudo isso?
Simples: domingo há a oportunidade de se descrer em tudo aquilo que escrevi ou acreditar. Se porventura acreditar, sinceramente espero, teremos muito trabalho pela frente. Haveremos de reconstruir este país. Tirá-lo das trevas, refazê-lo. Será difícil. Teremos êxito. Há a esperança. Do verbo esperançar: construir um mundo, um futuro melhor.
A mesma argumentação vale para disputa do governo do Estado de São Paulo.
Se não acreditar, se se recusar ao menos a pensar, refletir... Espere e verá.
O mundo é um moinho.
Vai triturar seus sonhos mais mesquinhos, reduzir suas ilusões a pó.
Imagem: Ilustração/Reprodução
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