O ódio se espraia pelos vãos e desvão das democracias contemporâneas. Não são apenas balões de lixo e fezes que deixam perplexa a sociedade mundial, como os apetrechos jogados pela Coréia do Norte sobre a Coréia do Sul. Como se sabe, aquela ditadura é capaz de tudo, inclusive, acionar artefatos nucleares para deflagrar uma guerra mundial. O que nos causa surpresa e perplexidade é o fato de que, no seio da maior democracia ocidental, os Estados Unidos da América, conceitos que imaginávamos fechados a sete chaves no baú da história, como guerra civil, guerra entre alas da comunidade, voltem a atormentar os espíritos.
Coisas que fazem coçar nossos ouvidos: depois de ser considerado culpado em 34 acusações, Donald Trump, candidato dos republicanos, consegue aumentar a arrecadação de recursos para sua campanha. E mais: consegue suavizar sua condição de criminoso, mentiroso, ameaça ao próprio sistema de valores, tão bem construído pelos fundadores da pátria norte-americana.
Tempos estranhos esses que estamos vivenciando. A Nação mais potente, mais segura e mais armada do planeta, ainda vive sob o impacto da invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, quando assistiu, perplexa, à tentativa de destruição dos seus mais queridos e festejados ícones e símbolos. Estamos vivenciando um estado de guerra mundial. Mudou o polo conceitual em torno dos conflitos globais. Não se trata mais de esperar por uma III Guerra Mundial, de natureza devastadora, deflagrada com foguetes e ogivas nucleares. A guerra está aí, intestina, invisível, atravessando fronteiras, destruindo, matando, ferindo a sensibilidade e maltratando o orgulho das Nações.
A mortandade é a estética da faixa de Gaza. A imagem de terra arrasada chega aos nossos olhos, exibindo destroços e corpos ensanguentados, choros, gritos, terror. A Ucrânia luta contra o invasor, a Rússia, numa guerra fratricida, povos irmãos que são suas populações. Em territórios da África, as estruturas comandadas pelo poder invisível, à base de guerrilhas urbanas, atos criminosos dispersos e muita brutalidade, esmagam as batalhas da diplomacia e a gerência de projetos de paz. As guerrilhas urbanas matam mais que as guerras clássicas. A violência, inclusive aqui por nosso território, é avassaladora. Só para termos uma ideia, morrem, por ano, no Brasil, cerca de 50 mil pessoas, ceifadas pela violência, quantidade que se soma aos contingentes dos conflitos contemporâneos.
A polaridade, que alimentou a guerra fria durante meio século, criando tensões entre Norte e Sul, Leste e Oeste, desloca-se para a questão geopolítica, para a área étnico-cultural e seus antecedentes históricos, fazendo emergir um discurso fundamentalista que passa a encontrar eco não apenas em regiões da Ásia e do Oriente Médio mas em territórios do mundo mais desenvolvido. Uma "guerra santa" instala-se no planeta, desenvolvida pela sabotagem e por sofisticada engrenagem tecnológica, caracterizada por captura de reféns, atos violentos de invasão de fronteiras, táticas de emboscada, numa programação articulada de bastidores e de quartéis-generais impenetráveis.
Como ocorreu nas guerras romanas, de Aníbal, Cipião e César, a estratégia indireta – ações escondidas e surpreendentes – aponta o rumo das guerras modernas. A surpresa, os pequenos comandos, a tática de emboscadas constituem fatores de vitória. Donde surge a comparação inevitável: os melhores e mais armados reis da Humanidade, assentados em tronos cercados de ogivas e foguetes supersônicos, enfrentam guerreiros toscos dos eixos do Mal.
Não se pode deixar de constatar, ainda, a precariedade das articulações empreendidas pela ONU e pelas potências para gerenciar as crises do mundo contemporâneo. O que está faltando aos líderes para se chegar a tempos de paz? Vontade política, entre outras coisas. A retórica da diplomacia de guerra tem canibalizado as ações práticas. Discute-se muito para se fazer pouco ou quase nada. Ao perfil de alguns governantes, faltam aqueles valores que emolduram a grandeza dos líderes: vontade, dignidade, compromisso, ética, honestidade.
O que poderá ocorrer, a partir de uma eventual vitória de Donald Trump, nos espaços democráticos do planeta? Mais uma curva à direita? Já temos, aqui, pertinho nas nossas vizinhanças, um convicto governante da direita conservadora. E não tenham dúvidas: o time trumpista, ganhando o jogo, acabará puxando o capitão Jair, em 2026. Mas ele é carta fora do baralho, pois é ilegível, dizem uns. Ora, arranjarão um jeito de anistiar o atacante.
Moral da história: corações e mentes se envolvem na teia do engajamento pelo ódio.
No coração dos cidadãos do mundo, a semente da guerra entre grupos se dissemina, deixando longe, muito longe, o tão almejado sonho da igualdade, da paz, da boa convivência e da justiça.
Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político.
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