OPINIÃO
Não é de hoje que pensar a liberdade de expressão é dar vida ao inimigo
Não é de hoje que pensar a liberdade de expressão é dar vida ao inimigo
“É conhecida a sentença condenatória dada ao humorista Léo Lins...”
“É conhecida a sentença condenatória dada ao humorista Léo Lins...”
Todo mundo, hoje, tem opinião fácil demais. E, com as redes sociais, ficou ainda mais fácil ter opiniões fáceis. Com frequência, a aparente simpatia das ideias comezinhas elimina o que teria de maior valor numa reflexão ou discussão: a elegância da observação e o repouso de seu sutil entendimento.
É conhecida a sentença condenatória dada ao humorista Léo Lins, penalizado a cumprir oito anos em regime fechado. Qual foi seu crime? Piadas, humor, e mais piadas.
Dito assim, parece inquestionável um evidente abuso de autoridade. E se eu reformulasse o exemplo? Qual foi seu crime? O de falar, apenas falar e falar. Calma, querido leitor, não estou a defender nem a sentença e nem a inocência dele. Fatalmente, estou compatibilizando temas delicados a opiniões fáceis. A essa altura, o leitor sagaz captou a sutil ironia.
Nessas semanas, li muito a respeito. Alguns textos formidáveis sobre os limites da lei; outros, incríveis acerca dos limites (ou não) da liberdade de expressão.
Tal como tinha de suceder, um companheiro saiu em socorro do Léo Lins. Danilo Gentili se manifestou em seu programa. Gentilli acerta na defesa, embora, como disse no início, ele tenha adotado a rapidez de deixar de lado seu ofício de humorista para revelar um pensador insosso.
Gentili há tempos experimenta erguer a tocha da intelectualidade. Não tem funcionado. Em seu pronunciamento, a certa altura, ele nos contempla com a seguinte pérola: “Num país onde quem faz humor vai preso, e quem rouba do INSS, não.” São essas suas palavras. Tenho certeza de que não as distorci. Não mais do que a subversão que ele causou ao debate.
Levei sua colocação a sério, com a mesma seriedade com que tenho levado o caso Léo Lins.
Com a frase fixa na cabeça, de forma automática a fui reformulando: “Num país onde quem faz humor vai preso, e quem tenta golpe, não.” Gentili afirma pertencer à direita e ao pensamento liberal. Se fosse pensador político arguto, não haveria relativismo em seu argumento, trazendo tão só os defeitos do oponente (esquerdista) para fundamentar sua defesa da liberdade de expressão e do Léo Lins. Antes, sua intenção é encontrar os causadores de todos os males. Quem me dera a sociedade fosse descomplicada, imune a contradições.
Uma pessoa pública de esquerda e progressista tampouco usaria a frase para atacar seus pares. Um socialista (ou petista) substituiria sem hesitar “INSS” por “golpe”, e assim por diante.
O pensamento dilacerado de quem se posiciona para sempre escolher um culpado da vez não tolera qualquer “observação elegante” e “sutileza de entendimento”.
Poucos intelectuais contribuíram para um debate franco e promissor como Norberto Bobbio. Seus livros versam sobre política, sociedade, cultura, Estado, governo, etc. Bobbio acreditava que as realidades social e política não devem ser analisadas pela severidade cega do engajamento.
Seu livro Liberalismo e Democracia (Edipro, 2023) veio ao meu socorro. Além do prazer de reler essa pequena obra, admirei o lado cômico dos meus grifos, que eram demasiados, exibindo, de repente, uma renovada força da multiplicação.
Para Bobbio, a função do intelectual sério é enxergar a preguiça e os excessos partidários e, com isso, exercitar a imparcialidade. Uma vez distinguidas as coisas, a confusão se desfaz. Pensar, para ele, é fazer da esfera intelectual um caminho sempre intermediário.
Ele nos lembra de que a democracia liberal como conhecemos hoje é ainda uma criança. Bobbio oferece uma amostra: na primeira constituição americana, escrita em 1776, se lê: “Todo poder emana do povo e dele deriva”. Em 1789, nas Declarações de Direitos da França, as palavras são outras: “O princípio de toda soberania reside essencialmente na nação”.
Ao longo do livro ele vai pontuando as diferenças entre Estado liberal e soberania popular. Há Estados liberais sem democracia, e Estados democráticos sem fundamentos liberais. A princípio, nunca foram irmãos. É o tal do Estado mínimo versus Estado máximo.
No primeiro caso, em que se a nação fosse governada o menos possível e as liberdades individuais estivessem definitivamente resguardadas, seria inimaginável Léo Lins no banco dos réus; nesse contexto, diga-se de passagem, o próprio Léo Lins, caso se sentisse ofendido por uma piada dirigida a ele, perderia tempo com um processo. Quanto ao segundo caso, não é preciso comentar. Já estamos a testemunhar.
Bobbio escreveu que “liberalismo e democracia se transformam por necessidade de irmãos inimigos em aliados”. Isso significa solucionar, por vias do pensamento resistente a pré-conceitos, um problema nada simples. Mesmo não sendo simples, é o melhor caminho.
Para os juízos do valor oposto (expressão dele), a corda bamba em que caminham as divergências entre “liberdades sem limites” e “poderes acima de qualquer controle” dependerá das condições e da posição que cada um ocupa na sociedade.
Diante da condição de humorista, estamos propensos a defender a liberdade de expressão de modo incondicional – o que serviria para toda forma de arte.
Mas deixo uma provocação: e se o Léo Lins não fosse humorista e tivesse dito o que disse, da maneira como disse, sem a roupagem da piada, com tom sério, e em semelhantes teatros e auditórios lotados?
Eu sei, eu sei, leitor. E se fosse alguém das ditas minorias, um negro ou uma feminista fazendo gracejos no lugar dele? Teria sido condenado à reclusão? Teria ao menos sido condenado?
Como eu gostaria de ter uma resposta pronta, a defesa da causa já formulada e meu espírito em paz.
P.S.: Bobbio não vê a Magistratura como Estado controlador. Esse pormenor simbólico é, como de costume, resultado das minhas equivocadas abordagens.
Gil Piva
O texto é de livre manifestação do signatário que apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados e não reflete, necessariamente, a opinião do 'O Extra.net'.