Fui dormir pensando em todas as pessoas que todos os dias escolhem uma música para seu Instagram. A intenção é clara: um enorme desejo de retratar uma manhã ainda a principiar, uma tarde a arder, uma noite a findar ou um instante particular (com imagens que, por mais que me esforce, nem sempre dou conta de captar a misteriosa mensagem). Inclusive eu, de modo parco, caio nessa armadilha.
Chamo isso de armadilha sem o intento de ofender alguém. A verdade é mais simples do que parece. Na “vida” virtual, buscamos fantasiar o que não temos na vida real - e não é pouco.
Acabo de assistir ao documentário Ennio, o Maestro (2021), disponível tardiamente no Prime Video. Inaceitável só agora ter recebido esse presente.
O filme concede um rico retrato do maestro Ennio Morricone, falecido em 2020, aos 91 anos. Digo que se trata de um retrato - mais do que de recortes de uma vida -, porque é impossível não enxergar a época à qual pertenceu como sendo também a geração que, em certa - e admirável - medida, ele ajudou a transformar.
Morricone se arriscou em trilhas sonoras improváveis. Quem não se lembra do assovio quase operístico - como bem destaca Clint Eastwood - em Por um punhado de dólares (1964)? E o que dizer da gaita impertinente que até hoje me causa arrepios e arrebatamento em Era uma vez no oeste (1968)? Ambos faroestes de Sergio Leone, com quem manteve profícua parceria.
Era incrível sua capacidade de mesclar efeitos sonoros à harmonia da música clássica. Ah!, e como abusava das vozes...
É desse estranhamento lírico, cujo estilo se constrói da mistura da delicadeza com a rudeza, que a natureza experimentalista de sua obra deu vida aos filmes A missão (1986), Os intocáveis (1987), Era uma vez na América (1984) e Três homens em conflito (1966). Este último atingiu, no formato antigo de LP, 10 milhões de cópias vendidas. Teria sido - segue a lenda - o álbum temático mais adquirido na história. Não duvido.
No fim, foram mais de 500 trilhas sonoras e um Oscar por Os oito odiados (2015), de Tarantino.
Detalhe inescapável: quem dirige o documentário é nada mais nada menos que Giuseppe Tornatore, de Cinema Paradiso (1988). Se, um dia, alguém devesse filmar uma homenagem a Morricone, é justo que fosse a pessoa que um dia rendeu uma das melhores - senão a melhor - honras ao cinema. Não apenas. Tornatore retribui um gesto de gratidão ao maestro. Cinema Paradiso também é sublimado pelas notas de Morricone.
Ao contrário do cinema (para ficarmos numa única e exemplar arte), as postagens nas redes sociais não passam de recortes. Estão longe de se tornarem um retrato dos momentos da vida, uma expressão significativa na forma de galeria - expondo (e explorando) nossas experiências individuais, familiares ou coletivas. É essa a condição incontornável.
O tédio da vida e a certeza de nossa insignificância fazem com que, pelo Instagram, simulemos um mundo contraditório, onde - não sei se feliz ou infelizmente - acenamos para “as coisas que nascem e morrem na esperança, salvo a esperança”, escreveu Cioran.
Cioran já descascava a ferida da existência antes de conhecer as eventualidades que sonhamos ambiciosos no mundo virtual.
Sim, fazemos parte de uma cultura. Mas como coadjuvantes. Ao contrário dos raros Morricones, a maioria de nós nunca cometerá assombros de beleza. Assim, a cultura que nasce da gente dificilmente carregará consigo nossas impressões.
Na desrazão da subjetividade misturada à fé de que os outros apreciem nossa individualidade bárbara, sem dúvida seria Ennio Morricone a musicalizar esse universo insubstancial das redes.
Gil Piva
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