Em 2005, o professor e filósofo Renato Janine Ribeiro lançava o livro O Afeto Autoritário: televisão, ética e democracia. É uma coletânea de textos e ensaios publicados em periódicos, nos quais ele discute, sob vários aspectos, a relação social e política da TV brasileira.
Já naquela época, a TV mudara bastante: havia mais negros, negros que não eram mais porteiros, motoristas ou jardineiros; havia mais mulheres na tela, mulheres bem realizadas, independentes; gays ganhavam espaço, a homofobia se evidenciava com a seriedade necessária.
Ainda naquela época, a TV tinha muito que mudar: negros permaneciam encenando papéis de empregados; mulheres pobres continuavam sendo retratadas como domésticas e ignorantes, ou como donas de casa submissas aos maridos violentos e alcoólatras; e os gays não entravam em cena em todas as novelas; era melhor não abordar em demasia nossos preconceitos silenciosos.
Renato Janine explica que, entre essas duas particularidades de avançar e retroceder, os personagens, em certo sentido, eram burlescos: representando indecência e grosseria, adjetivos vistos como sinônimos de “força” e “humanidade”. Essas características estranhas e contraditórias, trazidas à luz em um dos textos que dá título ao livro, podiam ser enxergadas em Pedro, interpretado por José Mayer, na novela Laços de Família.
Seu par (quase) romântico, Íris (Deborah Seco), tinha a mesma química: era insolente e causava - para usar um termo recente. Ela era eroticamente carente - em todas as suas dimensões e pulsões. Quem não perdia um capítulo (e eu era um desses) lembra de como ela nos atraía, de como a desejávamos, ao passo que, de repente, queríamos lhe dar umas palmadas e dizer umas verdades - ou as duas coisas; afinal ambas são uma forma de ter o outro sob nosso desejo de poder.
Essa ambivalência desperta simpatia nos espectadores. Simpatia pelo afeto, porque seduz e gera identificação. Simpatia pelo autoritarismo, que, pela sedução e identificação, sujeita o indivíduo a uma dependência. Íris era dependente de Pedro, de seu jeito aborrecido e bruto; eu e vários amigos éramos subordinados a Íris, à sua sensualidade e rebeldia.
Malafaia também joga com as palavras. O documentário Apocalipse nos Trópicos, de Petra Costa, disponível na Netflix, faz um balanço do crescimento evangélico na política.
Petra Costa não dá conta da História, de seus meandros e entreatos que ajudaram a moldar o cenário das últimas eleições. É fato que os evangélicos são os religiosos que mais dominam a política atual. Petra Costa até se esforça para ouvir os dois lados: evangélicos à direita e à esquerda; mas a forte presença do pastor Silas Malafaia no filme rouba a cena. Malafaia é uma figura à parte. Ou não. O excesso de olhar projetado sobre ele prejudicou o desenvolvimento e impediu de explorar inúmeros outros matizes dessa conjuntura curiosa e perigosa.
A certa altura, Malafaia rebate a entrevistadora e diz que “A democracia é a vontade da maioria absoluta”. Ele parece o Conselheiro Acácio, de Eça de Queiros. O tom duro e a voracidade volumosa de suas ideias misturadas ao chavão de sua formação moral cristã possuem semelhante paleta de cores. Quanto à frase dita, pobre Malafaia.
Na esperteza de seu santo delírio, Malafaia adota as incoerências abordadas por Janine Ribeiro. Sua fala sob medida para os adeptos é uma tragédia. Poucos percebem as reticências disfarçadas no final da frase: “A democracia é a vontade da maioria absoluta...”. Sim, da maioria absoluta, desde que decidida em plebiscitos, eleições diretas, consultas públicas, referendos, etc.
Recorrendo ao desgastado clichê, pergunto: e se, durante uma partida de futebol, um árbitro cometesse erros a ponto de prejudicar a vitória de um dos times, isso significaria que esse time, por ter a maior torcida presente no estádio, poderia usar da força para corrigir os resultados?
Se ele não completa a frase, a frase o completa.
Num instante, congrega sabedorias bíblicas; em seguida o pastor se retira permitindo que sua versão política mescle intolerâncias com sua imagem anterior. Exibe a defesa da democracia atacando a democracia. Sua ideia de soberania popular pela metade é apresentada logo após o insucesso de Bolsonaro contra Lula, não aceitando os resultados nas urnas.
Em sua fantasia democrática, Malafaia reafirma o desejo teocrático. Difícil supor que ele desconhecesse essas incompatibilidades.
A prévia feição que conquista seus seguidores se perde nos limites de seu pensamento inflexível - evangélico ou intelectual -, mergulhando no afeto autoritário - até hoje habituado e aprovado pela sociedade.
Vinte anos depois, penso nas novelas, penso no documentário, penso em Malafaia. Se a TV foi capaz de se desprover dos próprios (e de muitos dos nossos) preconceitos, ironicamente uma enorme parcela da sociedade teima incurável.
Gil Piva
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