
Vai chegando o fim do ano e minha ansiedade vai aumentando. Todos anos a mesma história: meu desejo de ler o que não li. Não sei por que, sou refém dessas ilusões – que, claro, conforme a vida avança, vão diminuindo.
Lá vou eu, com caneta em punho, listando alguns possíveis títulos e autores. Entre eles, na prateleira, está um Murakami ressentido, que me olha torto e desconfiado. Mary Shelley sorri com ironia para mim; ela bem sabe que meu interesse súbito em mergulhar no seu Frankenstein é uma motivação instantânea – e logo passageira – graças à recente versão cinematográfica de Guillermo del Toro. Fiz apostas altas com minha esposa que, desta vez, sem desculpas, lerei o clássico: primeiro o livro, depois o filme. Elas riram em coro, minha mulher e Shelley.
E, por razões profissionais, ainda preciso encaixar uma releitura de O Retrato de Dorian Gray.
Há outros livros, outros interesses, que dependerão exclusivamente do andamento das coisas. Penso que uma ótima ideia, para ignorar a pressão que cada lombada me causa, seria colocar portas nas estantes. Se não funcionar, pelo menos afastará um pouco a poeira que se junta.
Nesse entretempo livresco, me dou conta de que tanto Dorian Gray quanto Frankenstein abordam a imortalidade. Seriam essas duas escolhas mera coincidência ou articulações obscuras do meu inconsciente? Difícil saber. E não importa. Até porque nossas pulsões estão sempre agindo, e se estiverem atuando de modo mais intenso agora, tanto melhor: a literatura e a investigação do eu caminham juntas e, portanto, fornecem perguntas sobre absurdidades misteriosas.
Exemplo disso está nas várias censuras que o livro de Wilde sofreu. Escrito no século XIX, na Era Vitoriana, Wilde enfrentou a hipocrisia dos valores morais de então. A beleza de Dorian Gray, conservada na eternidade mediante a entrega de sua alma ao Diabo, é o símbolo da desconstrução das aparências.
Já em Frankenstein, a ideia de imortalidade repousa na reflexão sobre a dualidade dos avanços do conhecimento – científico, no caso –; ou seja, muitas maravilhas – como a beleza de Gray ou o triunfo de Frankenstein (o cientista) sobre a morte – podem ser monstruosas. Ambas as obras representam o homem castigado pela sua ambição.
Não à toa, o livro de Shelley foi igualmente desautorizado em sua época. E a própria Shelley passou por imbróglios e o fato de ser mulher dificultou sua consolidação como autora.
Quando falo de literatura, não falo apenas de literatura. Na evolução das absurdidades misteriosas, o cancelamento é o recomeço de um tempo e o fim do último homem. Contextualizo: em maio deste ano, a escritora Camila Panizzi Luz foi expulsa do Flipoços, Festival Literário de Poços de Caldas, por “fala considerada racista” (Veja, 02/05). O evento, inclusive, não deixou pedra sobre pedra: todos os seus livros foram extirpados do festival. Há duas semanas, na 36ª Bienal de São Paulo, foi cancelado o debate com Marie-Esméralda Leopoldine, que é sobrinha-bisneta do rei Leopoldo II. Alegação? Em razão do “trágico passado colonial” de seu tio-bisavô (O Globo, 06/11).
Sem mencionar que, quando não há traços de imposturas nos dizeres ou não são encontrados pecados nas reencarnações passadas da pessoa, a negação do outro é soberana até na simples e inofensiva divergência.
Não me admira que desses conflitos de visões não haja espaço para dúvidas; em vez da segurança de nossas certezas, é a partir das hesitações que ficamos desassossegados e livres para enfrentar nossas contradições.
Tati Bernardi, em seu artigo É Normal Gostar da Série 'Tremembé'? (Folha de S.P., 13/11), ao comentar a série da Prime Video, lança um ponto. Por que pessoas que cometeram atos horrendos são, muitas vezes, projetadas com traços de humanidade? E, pior, por que, ao passo que isso nos incomoda, desejamos saber mais? Concordo com ela. E a resposta talvez seja óbvia. Não são as possibilidades de uma essência humana em alguém fatalmente desumano que nos assustam. O que nos aterroriza é a eventualidade de um lado desumano ser desnudado em nossas certezas humanas.
Como é evidente, o cancelamento provocado por grupos identitários, por grupos que defendem o lugar de fala, etc., remonta – todos esses membros juntos e costurados – a um Frankenstein ambicioso que julga, pune, castiga e bane. Em se tratando de festivais literários e de mesas de debate, o cancelamento é ainda mais grave. Não estão neutralizando a discussão e a voz do outro – embora repulsiva em certas situações. Estão, antes de tudo, reprimindo as nossas obsessões fantasiadas na literatura, e a única garantia que se espera de um festival literário é sua capacidade de compreender o “indigno” que nos coloniza através de investigações analíticas. Ao contrário, daqui a alguns anos estaremos censurando novos Wildes e novas Shelleys. Ops! Engano-me. Já estamos.
Não se tem aí o embate contra a intolerância, muito menos a luta contra os preconceitos. Nas absurdas opiniões alheias, tememos reconhecer a misteriosa insensatez das nossas perversões. Assim como no caso de Tremembé.
Gil Piva
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