Depois que duplas sertanejas viraram “Cult”, fazendo shows nas mais badaladas casas do país e grande sucesso no meio universitário, a moçada adotou algumas frases como “chique no úrtimo” e “vazei na braquiára”, achando que são expressões do “caipirês”, mas na verdade isso é coisa de caipira suburbano. Para o capira legítimo, da roça mesmo, “chique no úrtimo”, não existe. O certo é “da ponta da oreia” ou “bicharedo de bão”. A mesma coisa acontece com “vazei na braquiára”, que para o caboclo é o mesmo que “picar a mula”, igual “carpir o pé” ou “cortar o chão”. E o sujeito saiu tão afobado, que “tomou um trupicão e quase caiu um tombo”. É que o caipira quando cai, sempre cai um tombo!
Na roça, quando o “peão” fica aborrecido, o povo diz que ele “tá amuado” ou então, “amarrou o burro”. Quando o marido chegava em casa e percebia que a mulher estava “bicuda”, logo ia perguntando: “Quiquié isso muié, purqueocêamarrô o burro?. E ela, geralmente de cara amarrada, ia logo dizendo: “O burro é meu e eu amarro ele adonde eu quizé!” Então, o negócio era ficar de bico bem fechado, “inté a reiva dela passá”. Senão, “as coisa podia piorecê” e aí era perigoso “de acontecê um arranca-rabo, um banzé, um fuá ou uma tribuzana”. O caipira sempre soube que “em boca fechada num entra mosquito”.
Naquele tempo, o povo amarrava muitas coisas. Quando alguém se dava mal, logo dizia que havia “amarrado a égua no pau errado”. Isso acontecia muito com os rapazes solteiros, quando suas namoradas mandavam eles “caçá sapo com bodoque” ou “catá coquinho”, que é mais ou menos a mesma coisa, que mandar o outro plantar batatas. Daí o sujeito “ficava despeitado” e tomava um porre daquelesde.chibóca ou de água que passarinho não bebe. Logo, os vizinhos da colônia ficavam sabendoque “um tinha largado do outro” e comentavam à boca pequena: “tadinho do fulano, onti ele ficô tão amargurado que amarrô um fogo que dava gosto. Foi lá na vendinha, chorô as mágoa, tomô uns pingão e ficôtudimatrapaiado. Tumém queria o quê? Bebeu qui nem um cavalo véio e dispois ficou cercando frango e bestemiando”.
“Bestemiá”, é a mesma coisa que blasfemar, praguejar, xingar, ou ainda, “chamá o coisa ruim”. Aí, coma “moringa quente” e umas a mais na “caxóla”, o caboclo “ficava macho, virava bicho” e ficava falando bobagem, caçando encrenca, “atentando” e “inguiçando” com os outros. E de vez em quando, acontecia de alguém perder a paciência, “ficáinfezado e virá o arreio, indo lá carçá a oreia do carniça, prá ele pará de cantá de galo”. E quando o pau quebrava, sempre alguém gritava: “óia lá gente, eles tão se matando, será qui num tem nenhum fio de Deus prá i lá apartá essa briga?. Claro que sempre aparecia o pessoal do deixa disso para acabar com o quiprócó. Lembro que meu avô sempre avisava, que nessas horas, era bom “ficá bem longe do puerão, prá num acabá no meio da confusão”.
Havia também outros empregos para a palavra “carçá”, que para o matuto, significa calçar qualquer coisa. “Carçá a botina”, por exemplo, significa ser precavido, econômico, cauteloso. É mais ou menos a mesma coisa que “fazer o pé-de-meia”. Quando a colheita era boa, o caboclo que era esperto e sabia “breganhá com juizo, sempre carçava a botina, fazia o pé-de-meia, arribava na vida, enricava, porque ganhava os tufos da bufunfa”. Mas, do mesmo jeito que tinha hora “prácarçá a oreia diargum fulano metido à besta”, tinha também a hora de “carçá o peito” com a “merenda”, o almoço ou o jantar.
Agora, quando São Pedro “não ajudava” e a safra era fraca ou totalmente perdida, por causa da geada, da seca ou da chuva em demasia, o caipira lamentava a má sorte dizendo que ia “à bancarrota, que ia ficá na perna da graia, no bico do urubu, na pindaíba. Que ia tê que vortá virá fregueis de cardineta, na “venda da colônia” ou no “armazém da vila”. Isso sim, era“um górpe de perdê o fôrgo, o prumo e ficáescangaiado”. Pessoas simples, cheias de crendices, muitos achavam que haviam “pegado catiça, que aquilo era mandinga, coisa feita, pau mandado ou zóio gordo, de argum morfético morfioso e invejoso”.
Repare que até hoje, o nosso povo arrasta o “erre” que é uma beleza. Nosso sotaque se torna inconfundível quando abrimos a boca para dizer palavras como porta, perto, certo, parte, torto, carta, gordo, sorte e mais um montão de palavras com o “erre’ no meio.
No autêntico “caipirês”, o “éle” é automáticamente trocado pelo “érre” e balde acaba virando barde. Calça é carça, volta é vórta, salto é sarto, problema é pobrema, algodão é argudão, talco é tarco e pulga vira purga. Da mesma forma, quando a palavra tem o “lh”, a troca é feita naturalmente pelo “i” e assim, vermelho vira vermeio, malha vira maia, falha é faia, filho é fio, velho é véio, relho é reio, palhoça é paióça, baralho é baraio, rolha é roia, palha é paia, palheta é paieta, palhaço é paiaço, piolho é pioio, velhaco é veiaco e por aí vai.
Para entender essa linguagem ao pé da letra, é preciso ter nascido e vivido um bom bocado no meio rural. A riqueza do idioma nativo do matuto, é a mais pura e legítima manifestação da fantástica cultura caipira. E muito disso está se perdendo, e nós estamos nos esquecendo que isso faz parte do nosso folclore.
O assunto é muito extenso, um inesgotável filão de preciosidades. Basta dizer que cresci ouvindo palavras como feta, que nada mais é que uma simples fatia de pão, mamão ou de melancia. Assim, só para exemplificar, calípio é eucalipto, campear é procurar, pinchar é jogar, curioso é abeiudo, bóbra é abóbora e balangar e balançar são a mesma coisa. Bitelo e baita, significam coisas grandes; fórfi, fósfro ou fósqui é fósforo. Binga é isqueiro, cacunda é costas, dor nas cadeiras é dor na coluna e despeitado é magoado. Cambito é perna fina, constipado é resfriado e rádia é emissora de rádio. Lembra do “Moacir da Rádia?”. Então, prometo que ainda volto ao assunto, contando mais coisas do tempo do “arco, do tarco e da água Verva”. Coisas “do tempo do Zagaia”, quando até o arco-íris era em preto e branco. Semana que vem tem mais. Até lá.