A família, considerada a célula mater da sociedade, alicerça sentimentos importantes e possibilita a criação de vínculos nas relações entre seus membros, apoiados na identidade construída no processo de sua formação e solidificação (BRANDONI; ARPINI, 2019). Ao longo do último século, porém, os formatos da família, a conjugalidade e a parentalidade sofreram diversas alterações, e valores do individualismo passaram a interferir na constituição e manutenção do casamento. Na contemporaneidade, a relação conjugal enfatiza mais a autonomia e a satisfação de cada cônjuge do que os laços e vínculos afetivos que os unem (ANDRADE, 2015).
Enquanto a conjugalidade implica interação que favorece a construção de uma identidade do casal, continuamente construída na vivência conjugal em “um espaço de apoio ao desenvolvimento familiar” (PIRES, 2008, p. 10), a parentalidade implica responsabilidades essenciais dos pais com os filhos, tais como cuidados econômicos, orientação e instrução, autoridade, trocas afetivas, compartilhamento de experiências cotidianas e as “funções executivas de proteção, educação e integração na cultura familiar das gerações mais novas” (PIRES, 2008, p. 14).
A ruptura da conjugalidade volta-se contra a constituição familiar e, em determinadas situações, rompimento de vínculos afetivos entre seus membros. Essa ruptura favorece a alienação parental e a violência, com impactos nas condições de vida e de saúde de todos, especialmente na infância, quando o crescimento e desenvolvimento humano ainda estão incompletos (ABRANCHES; ASSIS, 2011). Na alienação parental, ataques narcísicos do alienador violentam o ego da criança, com danos sérios, por vezes irreparáveis ou irreversíveis, e distorções incutidas em sua esfera psicológica a respeito do mundo (DIAS, 2013).
Entre os atos de violência que conduzem à alienação parental, Abranches e Assis (2011) reúnem cinco comportamentos parentais danosos do ponto de vista psicológico infantil: rejeitar (não reconhecer a importância da criança e suas necessidades); isolar (separar a criança do convívio social, que crê estar sozinha no mundo); aterrorizar (ataques verbais, clima de medo e terror, crença em um mundo hostil); ignorar (reprimir a estimulação, o desenvolvimento emocional e intelectual); e corromper (socialização negativa da criança).
Apresentada pelo psiquiatra forense norte-americano Richard Gardner (início de 1980), a síndrome de alienação parental (SAP) é uma perturbação da infância ou adolescência dentro do contexto de uma separação conjugal, cuja “manifestação preliminar seria uma campanha feita por um dos pais junto à criança, para denegrir, rejeitar e odiar o outro” (MONTEZUMA; PEREIRA; MELO, 2017, p. 1206). Gardner (2010) menciona três tipos de SAP (leve, moderada e grave), com influência negativa no desenvolvimento psicológico da criança, sob três fatores que favorecem o surgimento da patogênese: “lavagem cerebral”, instaurada pelo genitor alienador que “inventa” maus-tratos e abusos praticados pelo outro genitor como álibi pela falta de motivos reais, fatores circunstanciais e fatores inerentes à criança.
Gardner define a síndrome da alienação parental como “um transtorno da infância que surge quase exclusivamente no contexto de disputas pela guarda dos filhos. Sua manifestação primária é a campanha de difamação da criança contra um pai amoroso, uma campanha que não tem justificativa” (GARDNER, 2010, p. 2; tradução livre), e a “verdade do alienador passa a ser verdade para o filho, que vive com falsas personagens de uma falsa existência” (DIAS, 2013, p. 16).
A alienação parental determina o afastamento da criança e do genitor alienado, estabelece dependência do genitor alienador, anula a subjetividade da criança e lhe acarreta consequências diversas (MONTEZUMA; PEREIRA; MELO, 2017). A separação (divórcio) é uma experiência dolorosa e um sofrimento para os membros da família, incluindo o próprio alienador, e a identidade conjugal, construída no casamento, é diluída e leva os cônjuges a redefinirem suas identidades individuais, papéis e regras parentais, mas atinge principalmente os filhos (ANDRADE, 2015). O divórcio e a separação conjugal são perdas para os envolvidos em um contexto que afloram e se potencializam sentimentos na ambivalência entre o amor e o ódio, expressa nos sentimentos de raiva, ódio e tristeza ocorridos na disputa pela guarda dos filhos, em um longo e doloroso processo que pode durar anos.
A dinâmica da separação conjugal, focada principalmente no interesse dos filhos menores, deveria traduzir uma solução para o casal e a família e não uma sanção dos cônjuges. O dilema inicia-se com a ruptura dos laços conjugais, em que “existe um inconformismo do alienador em relação ao alienado quanto ao rompimento da relação de casamento ou união estável. Daí decorre o espírito de emulação ou de vingança que [...] leva à prática de alienação parental” (LOPES; ZANDONADI, 2016, p. 36), cujas estratégias buscam afastar, injustificadamente, os filhos do outro genitor a ponto de desestruturar a relação entre eles.
Na alienação parental, o genitor guardião (alienador) programa a criança ou adolescente para insuflar sentimentos de ódio, associado ao desejo de repúdio, vingança e destruição da figura do genitor alienado (OLIVEIRA NETO et al., 2015). O alienador instiga sofrimentos psíquicos extremos, desequilíbrio emocional, fantasias e crenças de maus-tratos recebidos do genitor alienado, o que impacta o desenvolvimento da personalidade infantil e gera um transtorno psicológico marcado por sintomas pelos quais o “genitor molda a consciência/percepção de sua prole objetivando desfigurar os vínculos existentes com o outro genitor” (LOPES; ZANDONADI, 2016, p. 38).
Como consequências imediatas da alienação parental, Abranches e Assis (2011) referendam que aquilo que deveria ser expressão de atos de amor e envolvimento afetivo transforma-se em litígio, raiva, ódio e vingança. Essa condição gera “incapacidade de aprender, incapacidade de construir e manter satisfatória relação interpessoal, inapropriado comportamento e sentimentos frente a circunstâncias normais, humor infeliz ou depressivo e tendência a desenvolver sintomas psicossomáticos” (ABRANCHES; ASSIS, 2011, p. 844). Produz, ainda, o surgimento de “diversos sintomas e transtornos [danos] psicológicos e psiquiátricos, por consequência de situações e fatos [...] devido à alienação parental provocada pelo genitor guardião do filho” (OLIVEIRA NETO et al., 2015, p. 11).
Diante da vulnerabilidade, do melhor interesse da criança e do adolescente e visando garantir sua proteção e direitos, a mediação e contribuições terapêuticas, empregando ferramentas da psicologia, surgem como estratégias para a solução do conflito, proporcionam diálogo e acompanhamentos terapêuticos entre os pais (que passam por sofrimentos intensos) e a criança ou o adolescente, previnem e solucionam a alienação parental pelo alcance do bom senso dos pais e demais pessoas envolvidas no conflito (VEIGA; SOARES; CARDOSO, 2019). Para Jonas (2017), uma vez detectada a alienação parental, é fundamental a ação de uma equipe multiprofissional (do direito, social, psicólogo etc.), para trabalhar uma intervenção de forma adequada e minimizar os danos causados para que não se tornem irreversíveis.
Psicólogo André Marcelo Lima Pereira
Email: andremarcelopsicologo@hotmail.com
REFERÊNCIAS
ABRANCHES, C. D.; ASSIS, S. G. A (in)visibilidade da violência psicológica na infância e adolescência no contexto familiar. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 27, n. 5, p. 843-854, maio 2011.
ANDRADE, A. O. R. Impacto emocional da síndrome da alienação parental na criança: uma revisão da literatura. 2015. 23 f. Monografia (Especialização em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, mar. 2015.
BRANDONI, R. P.; ARPINI, D. M. Violência e transgeracionalidade: relações familiares de jovens que cumprem medidas socioeducativas. Pensando fam., Porto Alegre, v. 31, n. 1, p. 256-270, jul./dez. 2019.
DIAS, M. B. Incesto e alienação parental: realidades que a justiça insiste em não ver. 2. ed. São Paulo, SP: Revista dos Tribunais, 2011. 320 p.
GARDNER, R. A. Does DSM-IV have equivalents for the parental alienation syndrome (PAS) diagnosis? The American Journal of Family Therapy, v. 31, n. 1, p. 1-21, November 30th, 2010.
JONAS, A. Síndrome de alienação parental: consequências da alienação parental no âmbito familiar e ações para minimizar os danos no desenvolvimento da criança. Psicologia.pt, Faculdade de Ensino Superior de Garça (FAEF), 19 nov. 2017. 16 p.
LOPES, A. C.; ZANDONADI, A. C. A alienação parental e seus impactos na formação da personalidade na perspectiva da psicanálise. Revista Farol, Rolim de Moura, RO, v. 1, n. 1, p. 31-42, ago. 2016.
MONTEZUMA, M. A.; PEREIRA, R. C.; MELHO, E. M. Abordagens da alienação parental: proteção e/ou violência? Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 27, n. 4, p. 1205-1224, 2017.
OLIVEIRA NETO, Á.; QUEIROZ, M. E. M.; CALÇADA, A. C. (orgs.); SOUSA, M. Q. L. (coord.). Alienação parental e família contemporânea: um estudo psicossocial. Recife: FBV /Devry, 2015. 121 p., v. 2.
PIRES, A. S. R. Estudo da conjugalidade e da parentalidade através da satisfação conjugal e da aliança parental. 2008. 83 f. Dissertação (Mestrado Integrado em Psicologia) – Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal, 2008.
VEIGA, C. V.; SOARES, C. E. C.; CARDOSO, F. S. Alienação parental nas varas de família: avaliação psicológica em debate. Arq. bras. psicol., Rio de Janeiro, v. 71, n. 1, p. 68-84, jan./abr. 2019.