O sobrepeso e a obesidade são os principais fatores para a carga global de morbidade. No Brasil, 58% das mulheres estão acima do peso e mulheres com idade acima de 45 anos apresentam excesso de peso maiores que 50,0%, embora tenham apresentado menor prevalência de obesidade na faixa etária mais jovem, dos 18 a 24 anos (BARBOSA; RAMALHO, 2021). A obesidade, que afeta pessoas de todas as idades e renda, aumenta com a idade até os 54 anos para mulheres, enquanto o sobrepeso vem combinado com outros fatores, como inatividade física, uso de álcool, dieta e hábitos alimentares não saudáveis, com prevalência acima de 50% (FRANCISCO et al., 2019; BRASIL, 2020). Trata-se de um problema de saúde pública em países ricos e pobres e, em decorrência, de estética corporal a ser corrigido.
Os “cuidados corporais relacionados à beleza, à estética e à saúde obedecem a um sistema de regras sociais, fruto da relação entre os indivíduos, seu corpo e a sociedade”, que faz vivenciar um corpo internalizado e manifestado por determinado grupo social (WANDERLEY; FERREIRA, 2010, p. 189). Esse sistema refere padrões corporais relacionados ao corpo magro, delineado, estético e eternamente jovem, que vincula símbolos de beleza, realização pessoal e erotismo, mas também representa um capital, objeto de troca, submisso à moda, cosméticos, estética, diferentes tratamentos corporais, modalidades esportivas variadas que contribuem para atingir um padrão de corpo vigente. Os discursos publicitários e jornalísticos mostram que, para ser considerado belo, um corpo deve ser perfeito (lê-se magro) e, para obtê-lo, qualquer sacrifício é válido (FLOR, 2009). A beleza atual se define por uma cultura de consumo de bens, muitas vezes, desenfreado, e pela vivência pessoal, que interagem e influenciam as experiências e escolhas. Assim, um corpo gordo é incompatível com o ideal de beleza corporal veiculado, e essa incompatibilidade pode ocorrer com o próprio corpo em todas as faixas etárias.
As representações midiáticas contagiam as experiências do corpo, reforçam a autoestima e revelam o poder de exibição do corpo na sociedade contemporânea: levam a imaginar, a diagramar, a fantasiar existências corporais, a sonhar e desejar (SANTAELLA, 2008), e dão suporte às ilusões do eu, sobretudo, com imagens do corpo reificado, fetichizado, modelado como ideal a ser alcançado para uma felicidade sem máculas. A beleza do corpo sempre foi cultuada pelos seres humanos e acompanhou os conceitos de cada época. Até o século XIX, padrão de beleza retratava corpos volumosos e rotundos, e ser gorda era sinônimo de saúde, beleza e sedução. O excesso de peso era próprio de indivíduos abastados e nobres, da classe dominante, abastecidos com o melhor alimento, vivendo distantes de qualquer atividade física. A partir do século XIX, porém, a visão de corpo belo se altera e se direciona à magreza (ANDRADE, 2003).
Revistas e veiculações midiáticas são essenciais para a criação dos padrões estético-corporais: reproduzem imagens de mulheres com o corpo magro, com atrizes ou modelos revelando como conseguem manter a forma e a pele perfeita, especialistas discursam sobre técnicas para “enxugar” as gordurinhas, esteticistas trazem as novidades sobre cosméticos e personal trainners falam sobre exercíciospara reduzir medidas, entre outras veiculações (FLOR, 2009). Elas reproduzem, divulgam, formam conceitos de corpo saudável e “estampam em suas capas há décadas ‘modelos’ de mulheres, exemplos a ser [sic] seguidos para alcançar um objetivo: o corpo ideal de cada época”. A ideia de corpo, no entanto, aloja vários outros ideais de comportamento e valores (SIQUEIRA; FARIA, 2007, p. 2).
Os discursos sensacionalistas se apoiam em pseudoconhecimentos para mostrarem o corpo gordo como patologia. Tais discursos soam como uma “caça aos corpos gordos” e acusam pessoas com sobrepeso ou obesas de estarem doentes ou lhes conferem o estigma de gordas, feias e doentes, que intimida a população feminina na sociedade contemporânea (JIMENEZ, 2018). Perigosos, esses discursos invadem todos os espaços sociais e a mídia: é percebido na falta de acesso ao corpo gordo na sociedade, na falta de cadeiras maiores em espaços públicos e privados, nas escolas, família, restaurantes, mercado. Estigmas como “feiura” e “gordura” isolam as “gordinhas” da sociedade, e exemplos disso não faltam: evitam passar na catraca do ônibus, frequentar uma academia, sentar-se em uma cadeira com braço ou mesmo fazer refeições em público. Os olhos que recaem sobre essas pessoas são depreciativos, julgadores, condenadores, e elas devem aprender a conviver com esses estigmas, ignorando-os. Uma boa constituição identitária, sem se deixarem influenciar pelo massacre, faz com que se reinventem e reconstruam seus corpos distantes do estereótipo de magreza, beleza e perfeição (BRITO, 2016).
A estigmatização das obesas e das “gordinhas” coloca em risco sua saúde psicológica e física, com implicações na implementação de medidas para a prevenção do sobrepeso ou da obesidade a partir delas mesmas ou de profissionais e entidades da área da saúde. Segundo Lee e Pausé (2016, p. 6), para esses profissionais pacientes gordos são menos respeitados pelos médicos do que pacientes não gordos, e muitos deles preferem não cuidar de pessoas gordas. Para eles a pessoa gorda é de fracassada, incapaz de aderir às recomendações médicas, não se preocupam com seu estado de saúde nem seguem as instruções dadas, são desinteressados para tratamentos de prevenção – essa visão sobre os obesos cria uma barreira para que procurem atendimento médico adequado e contribui para manter as mulheres em uma situação de inferioridade psicológica e social (MARCELJA. 2018). O fracasso expõe a banalização do tratamento e o prejuízo à esfera psicológica, com relatos dolorosos da experiência própria: a ideia do magro reforça a estigmatização da mulher obesa, que não é mais apenas uma gorda, mas alguém incapaz de mudar a própria identidade.
Aires (2019) enfatiza que o padrão plus size é estratégia publicitária e origem de movimentos sociais ativistas para reivindicar o direito de ser gordo sem sofrer estigmatizações ou censuras impostas: é o empoderamento de um novo padrão por mulheres classificadas como obesas ou acima do peso. A visibilização do consumo de moda plus size faz circularem imagens de moda para corpos maiores, e as “gordinhas” experimentam mudanças na construção identitária, na autoestima, no pertencimento social, na sociabilidade, no acolhimento (AIRES, 2019). Ironicamente, construções publicitárias atuais usam a mulher gorda para apelos humorísticos, mas nunca como referencial de beleza. O “ser gorda” e “ser bonita” não coabitam um mesmo corpo (BARBOSA; RAMALHO, 2021). Os estigmas às “gordinhas” se revelam em expressões preconceituosas e depreciativas como: “baleia, leitoa, elefante, pneu de trator, rolha de poço”, entre outras (BRITO, 2016). Associados às mensagens midiáticas, os corpos “gordinhos” estão fora dos padrões estéticos considerados ideais, e “corpo padrão” é aquele retratado pelas indústrias da moda e da beleza como um corpo feminino magro, alto e longilíneo – o preferido das mulheres (AMARI, 2014). Todavia, inversamente ao desenho de corpos macérrimos das modelos expostas em mídias, passarelas e revistas, a maior parte da população feminina se encontra acima do peso, com exceção da faixa de 25 a 30 anos de idade (IBGE, 2020; ABESO, 2020).
A autoimagem corporal não está restrita às influências da informação visual: é uma representação produzida por um contexto sócio-histórico e experiências individuais vividas pela dimensão sensorial: imagens olfativas, visuais, táteis, auditivas e cinestésicas, que permitem a internalização dos conceitos de si e do mundo. Essa imagem construída não é especular e pouco fiel à imagem real, mas a aceitação da autoimagem fomenta a autoestima e como o sujeito se projeta no mundo (BRITO, 2016). Uma boa autoestima gera equilíbrio do eu interior com o meio externo e reflete o modo como a mulher se comportar e o quanto gosta de si mesma.
A mídia reflete diversidade de representações e estéticas corporais e contém enorme variedade de imagens sobre marcas de moda brasileiras. O surgimento da moda plus size trouxe alterações “nos modos de apresentar, significar e representar o corpo gordo pela indústria da moda” e no desenvolvimento de um mercado de moda com nova padronagem. Aires (2019, p. 22) argumenta que a categoria de moda plus size cresce rápido anualmente e movimenta bilhões. A esfera do consumo de moda plus size movimenta e altera a representação corporal vigente: cenário que reflete as novas representações na comunicação da moda pressupõe o aceite a nova imagem do “corpo gordo” inscrita no imagético social e promove alterações no desenho desse corpo e modificações das marcas no mercado consumidor, porque consumo implica cultura e comportamento, o desejo de comprar, pertencimentos, distanciamentos, vínculos e subjetividades.
As “sociedades contemporâneas têm seu comportamento modulado pela mídia, que impõe ideais de saúde e juventude, difunde conselhos dietéticos, estéticos, desportivos, eróticos e psicológicos” e um padrão idealizado e homogêneo de beleza – imagens e padrões utópicos, com pouca probabilidade de serem alcançados, dissociados das necessidades singulares de cada indivíduo e do seu corpo singular (WANDERLEY; FERREIA, 2010, p. 190). Embora as mensagens enunciadas pela mídia e revistas de moda direcionadas a essas mulheres sejam de estímulo ao domínio sobre o próprio corpo, estigma caracteriza a representação negativa da mulher em suas relações sociais, associado com o sofrimento cotidiano. O estigma se torna visível em descrições de brechós Plus Size: “nós gordas, gordinhas, gostosas que sofremos não só nas lojas mais populares, mas também nos brechós que ainda é carente [sic] de roupas para o nosso tamanho”, e a ideia de “não ter seu número” implica inibição e vergonha decorrente da percepção pública de estar “fora de um padrão” (MARTINO; MARQUES, 2021, p. 29). Essa percepção põe em destaque a mulher que atrai – ou imagina atrair – olhares de julgamento e gestos avaliativos que originam o sentimento de vergonha e o estigma discriminatório (NOVAES, 2004, 2013). Para Nechar (2018), o fracasso do corpo gordo ocorre devido às inúmeras tentativas frustradas de tentar emagrecer, e a mulher se apresenta, ao olhar da sociedade, como negligente, desleixada, sem controle de suas ações e incapaz de se tornar magra e eliminar a gordura corporal. Evidencia-se a luta de um corpo gordo para se encaixar em um padrão magro, segundo os padrões de beleza veiculados.
Deve-se entender que o termo “gorda” ou “gordinha” pode, perfeitamente, conjugar charme e elegância e caracterizar experiências não somente negativas e traumáticas, mas positivas e gratificantes, como ocorre em: as gordas são puro “charme abundante”, “gordinhas”, “fofinhas”, “curvas fartas”, “charme extralarge”, “cheinhas de graça”, “formas generosas”, mesmo que expressões desse tipo venham a objetificar seus corpos, comparando a mulher a um violoncelo. As corporeidades gordas são mais proporcionais, com cinturas marcadas bem valorizadas, que deixam transparecer elegância e delicadeza (PILGER; GRUSZYNSKI, 2021).
A “postura atual é a de que a população geral de obesos não apresenta maiores níveis de psicopatologia, quando comparada à população geral não obesa” (WANDERLEY; FERREIRA, 2010, p. 190). Contudo, obesas em tratamento revelam maiores níveis de sintomas depressivos, ansiedade, transtornos alimentares, de personalidade e distúrbios da imagem corporal, o que faz pressupor que a obesidade esteja associada a fatores psicológicos como controle, percepção de si, ansiedade e desenvolvimento emocional (ESCODA, 2002). Mulheres obesas frequentemente apresentam imagem corporal empobrecida, sofrem angústia psicológica como baixa autoestima, depressão, ansiedade, pânico e transtornos de personalidade. No entanto, ser gorda não significa ter problemas psicológicos: é preciso desmistificar essa crença empregada como justificativa para o excesso de peso (DOBROW; KAMENETZ; DEVLIN, 2002). A inclusão dos profissionais da área da psicologia e da psiquiatria na terapêutica das “gordinhas”, vívidas, charmosas e elegantes, é bem-vinda por possibilitar um diagnóstico mais real das conformações da obesidade ou do sobrepeso, com possível definição do tratamento mais apropriado, e reconstrução de uma imagem corporal positiva.
Psicólogo André Marcelo Lima Pereira
Email: andremarcelopsicologo@hotmail.com
REFERÊNCIAS
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