Discutir acerca do direito à vida, à dignidade humana, à saúde e à autodeterminação da pessoa é interligar a área jurídica com a área médica, entendendo autodeterminação como capacidade de a pessoa tomar decisões que afetem sua vida, saúde, integridade físico-psíquica e relações sociais.
A discussão sobre a morte digna e o reconhecimento da obrigação ética e deontológica em saber identificar quando a morte é inevitável tem-se fortalecido com os avanços da medicina. Essa evolução passou a ofertar aos pacientes tratamentos voluntários ou não no sentido de prolongar, artificialmente, suas funções vitais, mesmo diante de poucas chances ou perspectivas de restabelecimento de uma vida digna. Nunes e Anjos (2014) reconhecem, todavia, que a consideração ética no processo de morrer supõe tensão extremada entre dois valores básicos: a inviolabilidade da vida humana e a exigência de morrer com dignidade humana, o que demanda a necessidade de o paciente expressar sua vontade de forma antecipada para quando não se encontrar em condições de fazê-lo.
Como resposta a essa situação, surgiram as diretivas antecipadas de vontade (DAVs – advanced care documents), “designadas para proteger a autonomia do paciente, sob a crença de que este, quando perder sua capacidade de decidir, será por meio desse documento mais respeitado em sua autonomia quanto ao tratamento desejado e/ou quanto ao representante legal que por ele decidirá em tal situação” (NUNES; ANJOS, 2014, p. 242). As DAVs são compostas, segundo Bomtempo (2012, p. 24), por três formas de manifestações: o living will (testamento em vida ou testamento vital), que indica os tratamentos ou sua recusa quando o paciente estiver em estado de inconsciência; o durable power of attorney (mandato duradouro do representante), que delega poder a um representante que decida e tome providências em seu nome; e o advanced core medical directive (diretiva do centro médico avançado), documento mais completo, “direcionado ao paciente terminal, que reúne as disposições do testamento em vida e do mandato duradouro, ou seja, é a união dos outros dois documentos”. As DAVs, pois, reúnem o conjunto de desejos manifestos previamente pelo paciente sobre cuidados e tratamentos que deseja receber quando estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade. Também reconhecem o direito de o paciente recusar tratamentos inúteis, isto é, tratamentos cujo objetivo é prolongar a vida biológica, sem garantir qualidade de vida ao paciente (HASSEGAWA et al., 2019).
O testamento vital refere instruções sobre futuros cuidados médicos com uma pessoa que se vê incapaz de expressar sua vontade, diante de um diagnóstico de terminalidade da vida (DADALTO, 2013). Elaborado em vida, enquanto ainda é capaz e estando em condições de perfeita saúde mental, por ele o paciente manifesta os tratamentos sobre os quais deseja ou não ser submetido em eventual situação de terminalidade (ISOLANI, 2020), os quais podem incluir procedimentos como ressuscitação cardiopulmonar (RCP), ventilação mecânica (uma "máquina de respiração"), medicamentos, tubos de alimentação, nutrição artificial, diálise e fluidos intravenosos (IV). Para Silva e Rasga (2021, p. 105), o testamento vital é “instrumento jurídico garantidor da autonomia da vontade do indivíduo, para assegurar a morte digna em casos de estado terminal, com uma doença crônica incurável ou em estado vegetativo persistente”. Assim, o testamento vital visa certificar e ratificar a autonomia do paciente, relativamente ao seu direito de rejeitar ou não procedimentos ou tratamentos médicos em situações em que as tecnologias da medicina claramente não mais possam oferecer oportunidades de cura terapêutica a determinada doença ou estado vegetativo ou terminal, o que impossibilita e afasta a obstinação terapêutica (JOSÉ, 2019; SILVA; RASGA, 2021).
Uma diretiva pode, também, incluir uma procuração médica (procurador ou agente de assistência médica), o que implica escolher alguém de confiança para decidir sobre os cuidados médicos, em caso de o indivíduo se sentir impossibilitado de tomar decisões. Trata-se do mandato duradouro, instrumento pelo qual o “paciente nomeia um ou mais procuradores que devem ser consultados pelos médicos no caso de incapacidade temporária ou definitiva para tomar alguma decisão sobre tratamento ou procedimento quando não houver manifestação prévia de vontade”, ou esclarecimentos para a plena compreensão do desejo paciente (DADALTO, 2013, p. 107). Saliente-se que o procurador decidirá, com base na vontade do paciente, sobre os tratamentos médicos quando a pessoa não mais for capaz de tomar decisões (DADALTO; TUPINAMBÁS; GRECO. 2013).
As diretivas antecipadas da vontade são instrumentos que visam estabelecer, antecipadamente, a vontade do indivíduo para que, em caso de incapacidade temporária ou permanente, prevaleçam seus desejos sobre seu próprio tratamento e os cuidados médicos que deseja ou não receber. Fundamentam-se nos princípios da autonomia, do respeito às pessoas e da lealdade e possuem como benefício a melhoria da relação médico-paciente e a autoestima do paciente, bem como propicia a diminuição de sentimentos de culpa e indecisão nos parentes (DADALTO, 2013). É um planejamento antecipado de cuidados que deseja receber diante de uma grave enfermidade ou no final da vida. Sugere-se que as diretivas antecipadas sejam revistas e atualizadas regularmente, mas o importante é que estejam de acordo com os objetivos e desejos do paciente para sua saúde.
As diretivas se aplicam em determinadas situações, em casos de estado terminal ou graves ferimentos, por exemplo. Vigoram quando o médico assegura que a pessoa não é mais capaz de tomar decisões sobre seus próprios cuidados médicos (BOMTEMPO, 2012; THOMPSON, 2015). Isolani (2020, p. 90) consolida a concepção de que as diretivas representam “um instrumento da autonomia privada, à luz do princípio da dignidade humana, gerando a faculdade de uma morte digna para aqueles que assim o desejarem”, portanto, buscam preservar “direitos fundamentais [...] da liberdade, da vida e da dignidade da pessoa humana”. Thompson (2015) lembra que as diretivas antecipadas de vontade não alcançam apenas pacientes idosos ou pessoas gravemente enfermas: qualquer indivíduo pode elaborar suas diretrizes antecipadas diante de situações diversas, sendo as mais comuns as enfermidades e ferimentos graves comprometam o bem-estar da pessoa e para os quais alguém deve tomar decisões difíceis sobre os cuidados médicos desejados para si mesmo.
Nas DAVs, devem-se estabelecer diferenças entre eutanásia, distanásia, ortotanásia e suicídio assistido como formas de se morrer com dignidade – em casa, rodeado pelos entes queridos e outras formas que a pessoa considere digna e previamente determinada (SÁ, 2005; THOMPSON, 2015; ORSELLI; FAISSEL, 2019).
Eutanásia (boa morte) é direcionada à facilitação da morte, engendrada por profissionais da área da saúde, executada pela utilização de técnicas que permitam a morte do paciente de forma menos dolorosa possível (JOSÉ, 2019). A discussão sobre sua legalização vem à tona quando ocorrem abusos terapêuticos para manter, a todo custo, uma vida que se está finalizando (obstinação terapêutica): contrariamente, são relevantes a “escuta e a acolhida de alguém que quer encerrar sua vida com dignidade” (KOVÁCZ, 2003, p. 142), embora sempre exista o temor de apressamento fácil da morte com os chamados excluídos (pobres, idosos, deficientes e psicóticos). A distanásia diz respeito ao prolongamento do processo de morte, por meio artificial, o que traz mais sofrimento ao paciente devido a uma obstinação terapêutica inútil. A ortotanásia (morte correta) corresponde ao não prolongamento, de forma artificial, do processo de morte, sem produzir ao paciente um padecimento físico, psicológico e espiritual por meio do emprego de técnicas terapêuticas inúteis (LAGRASTA NETO; TARTUCE; SIMÃO, 2012), e refere atos e procedimentos usados em pacientes terminais para que a morte ocorra com o máximo conforto possível (HASSEGAWA et al., 2019). Por fim, há de se considerar, também, o suicídio assistido como uma das ações humanas capazes de proporcionar a morte com dignidade, juntamente com a eutanásia e a ortotanásia, por se tratar de método planejado e repensado entre médico e paciente, com escolha consciente para morrer com dignidade. Tais ações podem proporcionar ao sujeito uma morte sem dor, sem sofrimento e martírio, e respeitar o direito de a pessoa escolher onde morrer, na companhia de quem morrer e de que forma morrer, não se expondo a situações de tormento contra sua vontade (SÁ, 2005; ORSELLI; FAISSEL, 2019).
No Brasil, as DAVs se acham regulamentadas pelo Conselho Federal de Medicina pelas resoluções nº 1.995 (CFM, 2012) e nº 2.232 (CFM. 2019) conjugadas. Embora apresentem diretrizes éticas a serem observadas pela equipe médica no exercício de suas atividades, por serem resoluções editadas por um órgão de classe (CFM), não possuem força de lei, inexistindo, atualmente, uma regulamentação legislativa específica sobre as DAVs no Brasil (ÁVILA; LAZARETTI, 2020).
O Conselho Federal de Medicina (CFM, 2012, Art. 1º) define diretivas antecipadas de vontade como o “conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”. Caso o paciente se encontre incapaz de comunicar-se ou de expressar suas vontades, cabe ao médico ou o representante designado pelo paciente considerar as diretivas antecipadas de vontade. Embora devam prevalecer sobre qualquer outro parecer não médico, incluindo os desejos dos familiares, o médico deixará de cumprir as diretivas antecipadas de vontade do paciente se estas estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica (CFM, 2012).
Vale destacar, porém, que o paciente pode recusar-se a receber procedimentos terapêuticos – direito que deve ser respeitado pelo médico, desde que este “o informe dos riscos e das consequências previsíveis de sua decisão” (CFM, 2019, Art. 1º). A recusa do tratamento médico reafirma a autonomia do paciente, mas devem ser registradas as objeções e opções de tratamento (BOMTEMPO, 2012). Nesse sentido, o Art. 2º da Resolução nº 2.232 (CFM, 2019, Art. 3º) garante ao “paciente maior de idade, capaz, lúcido, orientado e consciente [...], o direito de recusa à terapêutica proposta em tratamento eletivo”, exceto em “situações de risco relevante à saúde [em que] o médico não deve aceitar a recusa terapêutica de paciente menor de idade ou de adulto que não esteja no pleno uso de suas faculdades mentais, independentemente de estarem representados ou assistidos por terceiros”. As diretivas antecipadas não são, pois, vinculativas juridicamente, uma vez que um médico ou instituição hospitalar podem recusar-se a honrar tais “diretrizes antecipadas por motivos morais ou religiosos ou se os cuidados solicitados não forem medicamente apropriados” (THOMPSON, 2015, p. 868). Caso seja possível, um diálogo prévio com o médico sobre a enfermidade ajuda a evitar essas situações.
Na relação médico-paciente, existe, mesmo que tacitamente, um vínculo contratual de prestação de serviços, e o profissional médico, em geral, se serve de todos os recursos, meios e procedimentos necessários para restabelecer e manter a saúde ou a própria vida do paciente. Trata-se, em certa medida, de um ato jurídico, que engloba obrigações de resultados ou obrigações de meios (SÁ, 2005), mesmo se reconhecendo que esta relação vai além de um mero vínculo contratual, posto que os deveres do profissional médico em relação ao paciente devem ser sempre pautados na ética, no respeito à pessoa, ao direito à vida, à dignidade humana, à saúde, à liberdade e à autonomia (ÁVILA; LAZARETTI, 2020).
Na relação médico-paciente, a conduta médica deve observar as normas éticas e jurídicas, e os princípios norteadores da decisão no que diz respeito aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos a serem adotados; visam a beneficência, o respeito à autonomia do paciente, a dignidade humana em toda a sua essência, seus valores, crenças e desejos por se tratar, também, de aspecto moral essencial. Dentro dos princípios bioéticos, faz-se mister que o médico desempenhe, nessa relação, o papel de consultor, conselheiro e amigo, e aplique os recursos mais adequados (DINIZ, 2017). Na relação médico-paciente, as diretivas antecipadas representam a afirmação da autonomia privada do paciente antes de um possível estado de incapacidade e lhe assegurar dignidade e autodeterminação, direcionando o profissional médico e sua equipe a empregarem tratamento e cuidados previamente escolhidos pelo paciente (BOMTEMPO, 2012).
Embora existam três estados clínicos em que se decide executar uma DAV sobre o fim da vida (doença terminal, estado vegetativo persistente e demências avançadas), ainda persiste o conflito entre valores culturais individuais e critérios técnicos, e o profissional médico acaba por recear cumprir o desejo do paciente e sofrer com as consequências da judicialização da medicina (LOURENÇO; ALVES, 2021). Por isso, também persiste a necessidade de respaldo legal para que os profissionais de saúde reformulem seus conceitos a respeito da DAV, uma vez que a recusa do paciente ao tratamento e cuidados pode invalidar as ações médico-terapêuticas (DADALTO; TUPINAMBÁS; GRECO, 2013). Orselli e Faissel (2019) ponderam que a manutenção da vida prejudicada pela dor, pelo padecimento e pela morte iminente, contra a vontade do paciente, acarreta prejuízos psicológicos superiores à efetiva retirada da vida.
É imprescindível que se avaliem as condições de consciência do paciente e a presença de sofrimentos insuportáveis e sem alívio, além do apoio manifesto pelos responsáveis legais, o que respalda os envolvidos com uma solução pertinente. As diretivas antecipadas de vontade devem atender a uma sintonia estreita entre médico e paciente durante momentos tão difíceis, em que se sobressaem a confiança mútua no sentido der oferecer e receber assistência médica e humana, comungadas com suporte psicológico, garantindo ao ente querido uma morte digna. Todavia, segundo Nunes e Anjos (2014) e Hassegawa et al. (2019), não se podem negar as limitações para a implementação das DAVs, devido ao sentimento de impotência ou à obstinação terapêutica dos profissionais, e mesmo à ocultação do diagnóstico ao doente terminal, o que prejudica a adesão à prática das DAV.
Psicólogo André Marcelo Lima Pereira
Email: andremarcelopsicologo@hotmail.com
REFERÊNCIAS
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