Lançado em 1933, Casa Grande e Senzala conserva os traços profundos das transformações significativas por que o Brasil então passava: centralização administrativa, alternância do local dos grupos de poder local e regional, urbanização crescente e reestruturação da família e de suas moradias – sob uma visão conservadora na perspectiva a partir de sua posição de homem branco e senhor, posição que retoma uma espécie de nostalgia da cultura patriarcal.
Em Freire, a Casa Grande é o centro de coesão social. Por ela orbita todo o sistema econômico, social, político, religioso e sexual, em que a miscigenação racial, principalmente entre Negros e Brancos, apenas viria corrigir, em parte, a distância social entre ambos. O sistema de produção da época, organizado em torno da monocultura latifundiária (cana-de-açúcar), conseguia manter o senhor, os escravos e agregados unidos, subsidiar a moradia e a alimentação, sustentar a hierarquização social e a unidade da força de trabalho.
Não é demais assumir que essa coesão social se tenha formado, portanto, com fundamento no patriarcado e na interpenetração das culturas, em que a Casa Grande aparecia como uma espécie de símbolo da ausência de conflito entre senhor e escravo, posto que os espaços entreela e a Senzala eram ocupados oudivididospelo senhor e pelos escravos, notadamente pelas relações sexuais (miscigenação) entre senhores e escravas – o que reduzia as distâncias (sociais) entre ambos. Dessa miscigenação, principalmente da escrava doméstica (que tinha uma ligação “intima” com a Casa Grande, com seu “senhor”), nasce o filho mulato, o negrinho que serve de brinquedo ao filho do senhor, ambos criados sob os cuidados das mesmas escravas resignadas.
Era, assim, uma relação entre poder e sobrevivência entre brancos e negros. Daí nasceria uma cultura propriamente brasileira, que fundia expressões das duas raças nas práticas diárias, nas crenças e nas representações de poder. E, provavelmente, a abolição da escravatura tenha sido um mau negócio para os brancos, posto que impôs aos proletários brancosum regime de trabalho muito mais cruel do que aquele existente que sentiam no regime escravocrata.
Do mesmo modo, pode-se pensar que o patriarca latifundiário era considerado dono de tudo que se encontrasseem suas terras – escravos, esposa, amantes, filhos, parentes como filhos dos filhos – com extensão a outros elementos sociais como padres e políticos que dependiam ou se ligavam ao patriarca, ou mesmo “choramingavam” suas benesses.
Tangenciando Casa Grande e Senzala, pode-se pensar nos dias recentemente vividos pelo Brasil. Embora possa parecer um enorme equívoco, é-se levado a pensar em uma Casa Grande (representada pelo Poder Central que, na verdade, inclui os Três Poderes) e uma grande Senzala (tudo que está fora do Poder Central, representada por todos os brasileiros).
Divagando um pouco, mas não abstraindo totalmente a realidade, a Casa Grande detém o poder, dita as normas de sobrevivência e não parece inclinada a deixar esse poder, sob a máscara de “tutelar”e oferecer garantias de sustentação ao sistema econômico, social e político. Para manter o poder, recorre a todos os artifícios possíveis e meandros que tendem a ser convincentes, de tentáculos enormes e “reluzentes”(mas potencialmente mortais) para atrair suas vítimas, engendrando mecanismos para compor e manter o sistema.
Há todavia, que se destacar: se, em Freire, se calava em favor da sobrevivência própria sob a “tutela” de um patriarcalismo exacerbado que, não raramente, aviltava e vilipendiava a condição humana, as respostas atuais apontam outras referências e outras direções – o da reação nacional aos “conchavos” e “conluios”, aos desmandos, à prepotência, particularmente àqueles mecanismos que promovem os “desvios” e a “corrupção” que avassalam o país e marcam o “lado podre dos representantes” do povo brasileiro. Essa situação faz transparecer ou pairar no ar um divisão nacional entre “políticos” e seus pares (a partir de uma percepção extremamente negativa) e “não políticos” (os brasileiros quelutam pela vida, labutam, criam riquezas e vivem honestamente de seu trabalho).
Essa situação não é o que o Brasil quer e merece. O que o Brasil quer é o que Gilberto Freire esposa: “Eu ouço as vozes, eu vejo as cores, eu sinto os passos de outro Brasil que vem aí mais tropical, mais fraternal, mais brasileiro. [...] Todo brasileiro poderá dizer: é assim que eu quero o Brasil, todo brasileiro e não apenas o bacharel ou o doutor – o preto, o pardo, o roxo e não apenas o branco e o semibranco”.