Bruno Anselmi Matangrano
Na segunda metade do século XIX, o compositor alemão Richard Wagner (1813-1883) pregava a busca pela arte total, uma plena fusão entre variadas formas de arte, pela qual seria possível superar todas as outras. Para ele, isso seria possível com a ópera, que conjugava, a um só tempo: teatro, música, poesia, pintura, escultura e arquitetura (estas três últimas, nos trabalhados cenários), além de dança, é claro. Infelizmente, Wagner não viveu para conhecer a sétima arte, tendo morrido em 1883, pouco mais de uma década antes das origens do cinema, que levaria a ideia de fusão das artes a outro patamar e estabeleceria com o público outra forma de relação, muito mais intensa, democrática e eclética, já que disponível a todas as classes sociais.
O cinema somou às artes já presentes na ópera a fotografia e as novas artes digitais, na eterna busca por se produzir algo novo, compatível com os mundos moderno e contemporâneo. Nessa busca pela novidade, constantemente volta-se a técnicas antigas, que, reatualizadas, geram mais inovações. O filme Com amor, Van Gogh (do original, Loving Vincent), produção polaco-inglesa, dirigida pela dupla Dorota Kobiela e Hugh Welchman, que acaba de entrar em cartaz no Brasil, no último dia 16 de novembro, é, justamente, o mais recente resultado dessa busca intensa, que, ao mesmo tempo, presta tributo à técnica de pintura expressionista do pintor holandês, como também promove o tipo de inovação esperado de uma obra fílmica da segunda década do século XXI.
Inteiramente realizado a partir de 65 mil quadros, pintados à mão por uma equipe de mais de 100 artistas, que reproduziram obras de Vincent van Gogh e criaram outras nele inspiradas pela técnica, cenário e temática, Com amor, Van Gogh é um filme que já nasce clássico, pela ousadia, pela beleza, pelo cuidado (a longa produção durou seis anos!) e pela brilhante atuação de uma equipe escolhida a dedo, pois, não bastasse a dificuldade em se fazer uma animação inteiramente a partir de pinturas a óleo, estas retratam atores, cujas feições foram remodeladas segundo a técnica característica de pinceladas largas e curvas e as cores contrastantes e vivas que se tornaram a marca registrada de Van Gogh. Dentre o incrível elenco, temos: o jovem Douglas Booth (conhecido por seus papéis em Romeu e Julieta, Noé e O Destino de Júpiter), interpretando o protagonista Armand Roulin, filho do carteiro que cuidava da correspondência do pintor com seu irmão; Jerome Flynn (o Bronn, da série Game of Thrones); Aiden Turner (mais conhecido pelo papel do anão Kili, na trilogia O Hobbit, de Peter Jackson); a veterana Helen McCrory (a Narcissa Malfoy, da saga Harry Potter), para citar apenas alguns.
A trama, por sua vez, também é original. Baseando-se em fragmentos biográficos do pintor, o filme se desenvolve em uma espécie de investigação, na qual Armand Roulin aceita a tarefa de levar até os herdeiros do pintor uma carta que havia ficado sob a confiança de seu pai, endereçada a Theo van Gogh, o irmão do pintor e seu maior apoiador e confidente. Tal empreitada o leva a Paris, onde descobre que Theo também está morto, e, depois, a Auvers, cidadezinha na qual Van Gogh viria a morrer, aos 37 anos. Lá, o jovem Roulin percebe que as coisas não haviam se passado exatamente da forma como lhe foram contadas e começa a investigar a real causa da morte do homem que, pouco a pouco, passa a admirar.
Em um passeio pelas telas de Vincent, acompanhamos Roulin em suas entrevistas com os diversos modelos do pintor; com cada pessoa, o jovem descobre uma nova pista sobre os últimos dias de Van Gogh, compondo um quebra-cabeças que se revela através de flashbacks mudos em preto e branco, em evidente contraste com a vibrância de cores da narrativa principal. Dessa forma, o roteiro foge do óbvio que seria retratar a biografia do artista de forma linear, ao mesmo tempo que se volta para um período mais obscuro de sua vida, quando, após ter supostamente se curado de seus surtos psicóticos, Van Gogh busca uma calma rotina no vilarejo interiorano. O filme ajuda ainda a desmistificar a figura do pintor, visto como gênio louco, tirando a aura romantizada que a loucura muitas vezes assume em relação à arte. Na verdade, como se sabe, a arte foi terapêutica na fase mais difícil da vida de Vincent, que só conseguia pintar quando se encontrava mentalmente bem.
Van Gogh, nascido em 1853 na cidade holandesa de Zundert, foi um pintor expressionista holandês, detentor de uma técnica muito particular. Amigo dos impressionistas franceses e daqueles que viriam a compor o grupo autointitulado Nabis, passou dez anos de sua breve vida em uma busca incessante pela verdadeira expressão das coisas, em todo seu esplendor de formas, luzes, matizes e contrastes. Sempre correspondendo-se com seu irmão Theo, deixava claro nessas cartas suas preocupações futuras, ansiando pelo dia em que sua arte seria melhor compreendida, quiçá admirada. Infelizmente, esse dia não lhe chegou em vida. Qual não seria sua surpresa hoje, 127 anos após sua morte, se descobrisse que seu legado o tornou um dos mais conhecidos pintores do mundo, autor de uma obra icônica, pop, presente nos mais reconhecidos museus do mundo e reunida em coleções exclusivas como a do Museu d’Orsay, em Paris, e a do Museu Van Gogh, em Amsterdã, construído por outro Vincent van Gogh, seu sobrinho, filho de Theo, que viveu para tornar o sonho de seu tio uma realidade. Com amor, Van Gogh, é, portanto, a sagração dessa obra, a realização dos desejos do autor que com tanta delicadeza homenageia. É, como diz o título, uma obra feita com amor e, certamente, se Van Gogh estivesse vivo ficaria orgulhoso do resultado e, ao mesmo tempo, saborearia a sensação de dever cumprido.