Carlos Eduardo

O luar do sertão e o da cidade

O luar do sertão e o da cidade

Por Carlos Eduardo Maia de Oliveira - Professor e Biólogo

Por Carlos Eduardo Maia de Oliveira - Professor e Biólogo

Publicada há 6 anos

“Não há, ó gente, ó não

Luar como esse do sertão

Não há, ó gente, ó não

Luar como esse do sertão

Oh! que saudade do luar da minha terra

Lá na serra branquejando folhas secas pelo chão

Este luar cá da cidade tão escuro

Não tem aquela saudade do luar lá do sertão...”

(Trecho da canção “Luar do Sertão”, composta por João Pernambuco e Catulo da Paixão Cearense e lançada em fevereiro de 1914).


Realmente, o luar no sertão é mais belo e o céu mais brilhante do que o da cidade, ofuscados pelas luzes artificiais das vias públicas.


Nasci e cresci na cidade, por isso poucas vezes vi o luar no sertão, mas meu saudoso pai, tios e muitos de meus parentes e amigos mais velhos nasceram e cresceram no campo, alguns bem antes da intensificação da migração campo-cidade que ocorreu no país entre os anos 1970 e 1980.


De acordo com eles, a vida campestre era simples, sem luxo, rústica e desprovida das comodidades da cidade, no entanto, era rica em boas e marcantes experiências.


Não havia disponibilidade de energia elétrica, por isso geladeira nem pensar. Mas pedaços de carne eram fritados e conservados imersos em latas contendo banhas de porco ou na forma de charque ou carne de sol. Sorvete e outras guloseimas geladas, inexistentes. No entanto o doce de leite cremoso, feito para aproveitar a fartura de leite ordenhado de algumas poucas vaquinhas cruzadas, compensava e alegrava as crianças.


Máquina de lavar roupas, alvejantes, amaciantes e sabão em pó? De modo algum, o que existiam eram tanque ou algo similar, muita força nos braços para esfregar as peças e sabão de cinzas.


Por falar em cinzas, a comida era preparada na gordura de porco e no fogão a lenha e tinha um sabor inigualável. Ainda hoje, alguns restaurantes de comida caseira adotam esse método de preparo dos alimentos, nem que seja para manter aquecidas as panelas que ficam expostas aos clientes.


O gosto do frango caipira, criado nos quintais das propriedades rurais, não se compara ao de granja, e o pão caseiro, assado no forno de barro enrolado em folha de bananeira, era bem mais apetitoso do que o nosso pãozinho francês do dia a dia comprado nas padarias.


A visita à cidade mais próxima para comprar mantimentos era um evento ansiosamente aguardado por todos e certos produtos adquiridos na oportunidade, que hoje são corriqueiros em nossas despensas, eram verdadeiros artigos de luxo no meio rural, como açúcar, azeite, macarrão, sardinha, refrigerantes, entre outros.

O trabalho braçal e os alimentos consumidos de modo equilibrado, muitos dos quais eram naturais, contribuíam com o baixo índice de obesidade entre os cidadãos que viviam no campo, diferentemente do observado nas cidades atuais, nas quais é comum avistar pessoas bem acima do peso ideal.


As famílias eram mais numerosas e havia uma vantagem nisso, pois os filhos auxiliavam a mãe nos afazeres domésticos e o o pai na dura lida do campo.

Os irmãos mais velhos participavam da criação dos mais novos. As roupas e sapatos dos primogênitos eram reutilizados pelos membros mais novos da família. Em termos financeiros, criar um filho nos dias atuais é bem, mas bem mais caro do que naquela época. Simplesmente não tem comparação!


A criatividade da criançada na hora das brincadeiras era verificada no improviso de seus brinquedos confeccionados com sabugos de milho, pedaços de madeira e bonecas feitas de pano.


Obviamente, não existia televisão, internet ou celulares, mas a ausência dessa tecnologia favorecia a interação interpessoal, que era mais estreita entre todos no ambiente domiciliar. Na hora do jantar, sob a luz de lamparinas, contavam-se histórias antigas da família e contos que fazem parte da cultura popular. Ouviam-se músicas e as notícias em programas de rádio protagonizados por expoentes como Zé Béttio (faleceu na madrugada dessa segunda-feira, dia 27 de agosto de 2018, aos 92 anos), da rádio Record, e Júlio Lousada, da rádio Tupi do Rio de Janeiro.

Naquela época, as pessoas tinham mais tempo para conversar, trocar experiências e preocupar-se umas com as outras. Havia mais calor humano nas relações familiares.


Por falar nisso, a família brasileira ajustava-se a um modelo patriarcal, no qual a palavra do pai tinha força de lei nos lares e, como consequência, o respeito que os filhos tinham pelos pais era sagrado. Bastava um olhar mais sisudo, para acatarem as ordens paternas sem pestanejar. Bem diferente dos dias atuais. A propósito! É interessante notar que as pessoas que viveram essa experiência, hoje na casa dos 60, 70 ou até mesmo 80 anos, recordam com carinho das lições e ensinamentos de seus pais. Até agradecem por terem sido criadas com certo rigor.


Uma curiosidade da vida nas comunidades rurais: é um mundo silencioso, bem diferente do ambiente barulhento das cidades. Com isso, o homem do campo exibe uma audição mais apurada do que o cidadão urbano. Quem nunca teve a experiência de ouvir, na fazenda ou sítio, o ruído de uma condução distante bem depois de um homem do campo percebê-la?


Sem dúvida, a vida urbana é mais confortável, mas, como preconizado na letra da canção, o luar cá da cidade é muito escuro e não tem aquela saudade do luar lá do sertão.


OBS: a toada “Luar do Sertão”, que me inspirou a escrever este artigo, é uma das canções brasileiras mais interpretadas de todos os tempos, desde Vicente Celestino até Maria Bethânia. Como outras melodias que retratam a vida campestre, ela encanta pela ingenuidade dos versos e pela simplicidade da melodia. Porém, há uma controvérsia relacionada à sua autoria: Catulo da Paixão Cearense (1863 – 1946) defendeu a vida inteira que era seu único autor, no entanto, hoje em dia se dá crédito à João Pernambuco (1883 – 1947), de acordo com matéria publicada no site “Museu da Canção”, no dia 20 de novembro de 2012 (http://museudacancao.blogspot.com/2012/11/luar-do-sertao.html).



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