LIERATURA
Dois livros de músicas e cores
Dois livros de músicas e cores
Os livros Rani e o Sino da Divisão, de Jim Anotsu, e Exorcismos, Amores e Uma Dose de Blues, de Eric Novello, trazem a fantasia urbana com ambientação musical
Os livros Rani e o Sino da Divisão, de Jim Anotsu, e Exorcismos, Amores e Uma Dose de Blues, de Eric Novello, trazem a fantasia urbana com ambientação musical
Por Bruno Anselmi Matangrano
Muitas coisas podem chamar a atenção do leitor para um livro em um primeiro momento: uma boa capa, um bom enredo, um título provocante, ou até o nome do autor. Durante a leitura, a coisa muda e pode ser a atmosfera, as personagens, as descrições, os diálogos ou tudo isso junto o que mais vai cativar quem está lendo. No caso de Rani e o Sino da Divisão, de Jim Anotsu, e de Exorcismos, Amores e Uma Dose de Blues, de Eric Novello (ambos lançados em 2014, pela editora Gutenberg), dois livros tão diferentes à primeira vista, ainda que possam ser classificados em um mesmo modo narrativo (a fantasia urbana), além de tudo isso, o que mais me chamou a atenção foram as suas cores e músicas. Pode parecer estranho falar isso, mas o caso é que estes dois livros são extremamente imagéticos (isto é, conseguem fazer o leitor ver muito bem tudo o que se passa no livro), quase como um quadro, uma HQ, ou melhor, um filme.
E tal como em um bom filme, em ambos há uma excelente trilha sonora! Isso porque tanto o livro do Jim quanto o do Eric se desenvolvem em torno e a partir de músicas. O primeiro, que é voltado ao público juvenil, pendendo para o punk, rock e emocore (salvo engano, não sou nenhum especialista) enquanto o segundo deixa o blues acalentar suas personagens sedutoras e atormentadas... (obviamente, o público do Eric é mais adulto). Vou tentar explicar um pouco melhor. Tal como seu autor, Rani e o Sino da Divisão se constrói em meio à excentricidade (Jim diz viver no fundo do mar e escrever seus livros em folhas de alface, por exemplo). A primeira impressão do livro (logo nos primeiros capítulos) lembra filmes e livros da moda adolescente como Diário de um Vampiro, Crepúsculo, ou Dezesseis Luas, nos quais em uma cidade, onde nada acontece, uma (ou um) adolescente entediada(o) leva uma vida morrente quando é arrebatada(o) pelo sobrenatural na figura de um ou uma menino(a) misterioso(a). Mas não se precipite em julgá-lo!
Como disse, essa é apenas uma primeira impressão, logo virada do avesso. Na verdade, Jim está visivelmente brincando com o leitor (e com esse tipo de história), pois seu livro logo se diferencia (e se distancia) deste tipo de história não apenas pelo tom ao mesmo tempo leve-ácido-engraçado, mas também pela cor... Não que o livro seja ilustrado; se o fosse, porém, o seria em cores vibrantes, saturadas, florescentes, como o roxo e o laranja da linda capa. O fato é que mesmo não sendo ilustrado cores saltam aos olhos do leitor ao longo da narrativa, como em um filme de Tim Burton de sua fase colorida (isto é, dos filmes A Fantástica Fábrica de Chocolate, Sombras da Noite ou Alice no País das Maravilhas).
E exatamente como em um filme de Tim Burton, o humor, a cultura pop e uma pitada de atmosfera gótica se entrecruzam em meio a inúmeras referências literárias e, sobretudo, musicais. A história gira em torno de sua narradora, Rani, uma menina de bem com a vida que vive com sua família em uma cidade pacata de interior. Tudo muda, no entanto, quando conhece o vampiro-fluorescente Pietro e descobre ser uma xamã. Isso tudo não bastante, assim como Harry Potter, ela fica sabendo que o mais poderoso e maligno dos feiticeiros deseja matá-la. O fantástico da história se constrói justamente no entrechoque entre o mundo real pacato, sem graça e opaco da cidade de Rani de um lado (bem, estou exagerando, sua vida é bem legal, ela tem até uma banda de punk death metal, mas ainda assim... é diferente de viver num mundo de vampiros, demônios, lobisomens e... dinossauros!), e, do outro, as cores vibrantes do mundo sobrenatural, ao qual é conduzida, introduzido por um adolescente fluorescente, como na música do Artic Monkeys.
Já Exorcismos, Amores e uma Dose de Blues, de Eric Novello, lembra algo do que poderia ter sido uma adaptação das HQs de Hellboy não pela mão de Guillermo del Toro, mas também pela de Tim Burton, como disseram certa vez no Facebook do próprio autor. Nesta fantasia urbana de atmosfera noir, meio distópica, somos apresentados à Libertà, uma versão sobrenatural de São Paulo, na qual Tiago Boanerges, um decadente exorcista doente e desempregado, se envolve em uma trama digna dos melhores romances policiais, ao lado de necromantes, ilusionistas, salvaxes (seres feéricos semelhantes a lobisomens) e efrites (seres oníricos feitos de fumaça) para enfrentar uma musa (um ser de luz extremamente poderoso) enquanto busca se redimir de um passado do qual nada se orgulha...
Diferentemente do livro de Jim Anotsu, que se passa em um mundo fluorescente e vibrante, Eric Novello nos conduz por esta Libertà de neon e fumaça, de azul sombrio e roxo pálido, ecoado na bela capa do livro. Em outros momentos, também somos levados ao Entremundos, uma terra para além dos espelhos, com leves traços de um steampunk pontual, muito bem realizado, e muitas referências, onde as mais bizarras criaturas parecem encontrar um lugar para chamar de lar. A trama e a linguagem denotam uma elaboração ainda rara na literatura fantástica brasileira, pois ao mesmo tempo em que suas cenas são, como eu disse no começo, extremamente visuais (facilmente adaptáveis aos meios televisivos e cinematográficos, ouso dizer), a elaboração das descrições, o evidente cuidado e trabalho com a linguagem e a força dos diálogos, descrições e digressões demonstram uma voz amadurecida, de quem tem consciência do que está fazendo.
Ao fundo de cada cena, quase sempre está “tocando” um blues suave, cuja letra aparece entrecortada por memórias que com ela se misturam, dando o toque de mestre, instigando o leitor e o colocando no meio das sensações e pensamentos, confusos e difusos, e por isso mesmo tão reais, do exorcista Tiago Boanerges. Para quem gosta de livros diferentes, que brincam com sua imaginação, que o levam a lugares incríveis, estranhos e até um pouco sinistros, que mexam com seus sentidos, e sobretudo que trazem novas formas de contar, de ver, de ouvir e de sentir uma boa história, Rani e o Sino da Divisão e Exorcismos, Amores e Uma Dose de Blues são uma ótima pedida.
*BRUNO ANSELMI MATANGRANO, AUTOR DE ‘CONTOS PARA UMA NOITE FRIA’ (LLYR), É PESQUISADOR, EDITOR, TRADUTOR, ESCRITOR E DOUTORANDO PELA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP)