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POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA – rualização, invisibilidade e exclusão

POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA – rualização, invisibilidade e exclusão

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Publicada há 2 anos

O processo intensificado de exclusão social e rualização cria reflexos para uma ampla população em situação de rua (PSR) e, em meio à ocupação das áreas urbanas pela apropriação privada e pública, penaliza aquelas pessoas que não dispõem de renda suficiente para conseguir espaços adequados para habitação e contribui para sua marginalização. Como alternativa para continuar vivendo, essa população utiliza as ruas da cidade como moradia (ABREU; SALVADORI, 2015). Como fenômeno social, a situação de rua está entre aqueles que mais expõem a pessoa à exclusão social. Habitualmente chamados de mendigos, andarilhos, vadios e drogados, os indivíduos em situação de rua se caracterizam pela invisibilidade social e, muitas vezes, pela marginalidade, crime e uso de drogas (HUNGARO et al., 2020).

Segundo Brasil (2009a, Art. 1º) e Brasil (2020, Art. 1º), considera-se “população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos [em ruínas] e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória”. Brasil (2020, Art. 9º) também considera como prioritários a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica, devendo a “rede intersetorial [...] combater os estigmas, discriminações e preconceitos de toda ordem dirigidos à população em situação de rua, inclusive no que se refere às repressões e opressões, às práticas higienistas, e às violências de todos os tipos”, por meio de “estratégias midiáticas de comunicação, como campanhas de sensibilização de promoção e garantia de seus direitos”. As equipes dos serviços, programas, projetos e benefícios do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) devem “contemplar a prevenção à situação de rua e o combate à discriminação e violência contra a população em situação de rua, nos atendimentos e acompanhamentos individuais, nas atividades em grupos, nas oficinas coletivas e nas ações comunitárias”; para tanto, devem considerar as causas e consequências dos componentes do fenômeno da situação de rua, como “pobreza extrema, perda da capacidade de subsidiar uma moradia, fragilidade de vínculos e demais violação de direitos” (BASIL, 2020, Art. 51).

Os principais motivos que induzem as pessoas a habitarem as ruas estão associados à pobreza extrema, ausência de vínculos familiares, perda de algum ente querido, desemprego, violência e conflitos familiares (incluindo separação conjugal), perda da autoestima, alcoolismo, uso de drogas, doença mental e estigma, com impactos negativos no bem-estar psicológico. Mais raramente, ir para as ruas é uma escolha pessoal motivada e justificada pela sensação e o prazer de liberdade (BRASIL, 2009b; MOURA JÚNIOR; XIMENES; SARRIERA, 2013; ALC NTARA; ABREU; FARIAS, 2015; SICARI; ZANELLA, 2018; MENDES; RONZANI; PAIVA; ANDRADE, 2020). O contingente de pessoas em situação de rua tende a se ampliar, visto que, a cada ano, mais indivíduos utilizam as ruas como moradia.

O Brasil não realiza contagem oficial da população em situação de rua em âmbito nacional e, por isso, torna-se difícil incluir, de forma adequada, esse segmento nos “cenários de atenção pública” e no todo do planejamento governamental. Por essa razão, corre-se o risco de reproduzir a invisibilidade social da população em situação de rua, deixando-a à margem das políticas públicas. O censo do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) apontava, em 2019, uma população em situação de rua informada de 90.158, número que evoluiu, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) para um total estimado dessa população no Brasil de 221.869 pessoas em março de 2020, embora o Cadastro Único aponte 134.374 de indivíduos em situação de rua para esse mesmo ano (NATALINO, 2020). Essa evolução rápida no período de calamidade se deve, em análises preliminares, à possibilidade de já se observar algum efeito da pandemia (COVID-19) nos últimos dados disponíveis em março de 2020, chamando a atenção o crescimento rápido e a aceleração recente desse crescimento. Deve-se, todavia, considerar que a heterogeneidade, a itinerância e a mobilidade da população em situação de rua implicam dificuldades para se realizarem pesquisas e censos sobre esse público, tendo-se em vista a precariedade das suas condições de vida ou como vivenciam a pobreza nas ruas (ESMERALDO-FILHO; XIMENES, 2021).

Costa (2014, p. 67-68) comenta que a invisibilidade dos indivíduos em situação de rua está “associada à vagabundagem, vadiagem, prostituição, mendicância, pobreza, ou seja, é observada como mazela social que empurra o sujeito para viver na e da rua [...] um estereótipo criado a partir do imaginário coletivo sobre a pessoa que mora na rua”. A permanente vulnerabilidade social, emocional e física relacionada com a exclusão social marca indivíduos, locais e famílias, que se encontram em estado de pobreza absoluta e apresentam sinais de desnutrição, condições precárias de moradia, pouco acesso à saúde, à educação e ao saneamento básico, raras possibilidades de emprego e renda, o que os torna cidadãos em risco social abaixo da linha da pobreza (COELHO; TAPAJOS; RODRIGUES, 2010; BORYSOW; CONILL; FURTADO, 2017), isto é, expressa uma “multiplicidade de possibilidades multifatoriais, de cunho individual, relacionados ao processo histórico e à própria história de vida, assim como a pobreza traz à luz as desigualdades sociais” (GIACOMELLI; SCHROEDER, 2021, p. 187).

Em que pese o Sistema Único de Saúde (SUS) prever a garantia do princípio da universalidade, acesso igualitário, integral e equânime a toda a população brasileira, na prática, não se vê a implementação desse direito às pessoas em situação de rua, a não ser em situações de urgência e emergência, atendidas, muitas vezes, por profissionais sem o devido preparo para identificar e compreender suas reais necessidades de saúde como moradoras de rua. Nesse contexto, apesar da efetivação de alguns programas sociais, poucas políticas públicas são direcionadas à solução desse problema, destacando-se as Organizações Não Governamentais (ONGs) e as Instituições Religiosas nos serviços de amparo a essas pessoas, por meio da distribuição de alimentos, roupas e cobertores, além do acolhimento por abrigos temporários e albergues, embora sejam em número insuficiente para suprir a demanda dessa população. Na política de assistência social, existem equipamentos destinados a esse público, como os CREAs (Centros de Referência Especializado de Assistência Social) e os CentroPop (Centros de Referência Especializado para a População em situação de Rua), e referem espaços físicos, habitualmente ligados à secretaria de assistência social do município ou estado, que estão aptos a receber, acolher e a ajudar as pessoas que se encontram em situação de rua.

A PSR vivencia condições claras de privação, pobreza e renda depauperada, além da deterioração de aspectos relacionados à educação, habitação, saúde, trabalho, direitos humanos e subjetivos – dimensões intensas que se materializam nos processos de exclusão social, baixo nível de educação formal, violência, uso abusivo de drogas, insegurança alimentar e más condições de saúde (ESMERALDO-FILHO; XIMENES, 2021). Na dimensão subjetiva, a PSR experimenta privações dos processos psicossociais, com ruptura ou fragilização de vínculos familiares e sociais, preconceito e estigmatização que se tornam mais intensos diante das más condições de higiene, do uso abusivo de droga (CARAVACA-MORERA; PADILHA, 2015) e da humilhação e vergonha com “significativo sofrimento psicológico, repercutindo em atitudes de isolamento social, de impotência e de incapacidade, podendo desenvolver fobia social e ideações suicidas” (MOURA JR; XIMENES; SARRIERA, 2013, p. 20). Embora seja um desafio a saúde a ser garantida a essa população, outro desafio exponencial implica garantir sua inclusão no mundo do trabalho e na participação ativa da vida social. Historicamente excluída, a população em situação de rua vivencia o estereótipo de pessoas “renegadas, sem documentos, sujas e sem dignidade”, vivem à “margem dos processos de inclusão e sofrem graus variados de vulnerabilidade e marginalidade no acesso aos bens e serviços, como trabalho, educação, habitação, transporte, lazer e saúde” (LIRA et al., 2019, p. 2).

Dentre as complicações médicas possíveis, as doenças referentes à saúde mental desses indivíduos são evidentes, ou seja, sujeitos que utilizam as ruas como espaço de moradia e/ou sobrevivência (BRASIL, 2009b). Para transpor esse obstáculo, uma solução possível encontrada na Psicologia é procurar restabelecer os vínculos socioafetivos rompidos, aproximando profissionais da Psicologia e equipes de saúde (SICARI; ZANELLA, 2018). Os vínculos afetivos se diferem de envolvimento afetivo: significam uma “aproximação saudável com o público atendido [..] respeitando os limites da atuação profissional” (GAIA; C NDIDO, 2020, p. 8). Assim, compreende-se que o Assistente Social não deve ser o único profissional a atuar no âmbito do SUAS, mas em comunhão com o Psicólogo, cuja real função no âmbito do SUAS é a de construir “estratégias que efetivem o acesso do cidadão aos direitos socioassistenciais, levando em conta, porém, a dimensão subjetiva que está envolvida na situação de vulnerabilidade e/ou violação de direitos” (CRP-MG, 2015, p. 42).

A atenção à pessoa em situação de rua (PSR) requer alterações nos processos de trabalho das equipes de saúde e assistência social, diante do diferente cenário (rua ou abrigos improvisados e temporários) que habita e as necessidades sociais e de saúde apresentadas que exigem dos profissionais dos serviços detalhes impostos ao fazer técnico, teórico-prático e ético-político, e imperatividade do trabalho em equipe e intersetorial. O trabalho em equipe não pode colocar em risco a própria assistência, mesmo diante dos muitos entraves comprometedores da resolutividade dos serviços prestado à PSR, como “desintegração dos setores, uma rede restrita, fragmentada e excludente, o despreparo de alguns profissionais da rede e os preconceitos e estigmas acerca da especificidade do público”, incorrendo em “práticas de racismo institucional” – fatores que dificultam o acesso e a continuidade da atenção e do cuidado a essa população (MACEDO; SOUSA; CARVALHO, 2020, p. 170-171).

A Psicologia pode atuar na realidade de pessoas em situação de rua visando transformar a realidade que as envolve (como a pobreza), de forma a compreender o psiquismo de cada indivíduo e suas estruturações. A Psicologia atua diretamente com a PSR por meio das políticas públicas, socioassistenciais e de saúde, especialmente por meio da Política Nacional da Assistência Social (PNAS), que reconhece para essa população a necessidade de atenção no âmbito do Sistema Único da Assistência Social (SUAS). Suas funções se referem, sobretudo, a conhecer a história de vida do sujeito, compreender os motivos que o levaram às ruas e o desejo que o move para superar a situação e, posteriormente, realizar os necessários e adequados encaminhamentos à rede de assistência (CRP-MG, 2015). É ainda de seu mister realizar dinâmicas de grupos, reforçando direitos, deveres e igualdades que detêm na sociedade, e trabalhar a autonomia dos indivíduos para que reconstruam seus projetos de vida.

Segundo Motta Costa (2005, p. 14), diante das incertezas que condicionam o “contexto social contemporâneo e da gravidade da situação específica de violação de direitos que caracteriza a população em situação de rua, vê-se que o caminho a ser seguido é a implementação de políticas públicas capazes de ampliar a abrangência protetiva do Estado para com esse público”.


Psicólogo André Marcelo Lima Pereira

Email: andremarcelopsicologo@hotmail.com

REFERÊNCIAS

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