OPINIÃO

No caso dos bebês reborns, o melhor remédio é não tapar os ouvidos para Prudêncio

No caso dos bebês reborns, o melhor remédio é não tapar os ouvidos para Prudêncio

Por que a existência das mães de reborns incomoda tanto?

Por que a existência das mães de reborns incomoda tanto?

Publicada há 16 horas

Eu rio com as fortes manifestações acerca das mamães de bebês reborns. Entendo as reações.

Também compreendo esses suspiros comportamentais das mães de reborns - mesmo com o controverso ar “infantilizado” ou “adoecido”, como gostam de dizer por aí. Vamos com calma.

Repito: me divirto com a rapidez com que as pessoas utilizam a palavra “loucura”. Se há algo de novo nas mães de reborns, seria o sintoma. O mundo sempre foi louco.

Basta lembrar o que escreveu Machado de Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas: “Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias”. Para quem não recorda, os pequenos senhorios faziam o que bem entendiam com as crianças negras.

Cito Machado para mostrar que o mundo de hoje não é pior que o de ontem, ao contrário do que muitos tentam nos convencer.

A História nos ensina muitas coisas. Uma delas é que em certas épocas as bonecas deixaram de pertencer apenas às crianças, e passaram a obter uma função ritualística para os adultos.

As bonecas de porcelana, num passo a mais em sua perfeição lúdica, representavam a caracterização dos traços humanos, ampliando nas civilizações antigas um fascínio - várias vezes ligado à religiosidade e à fantasia humana.

Não nego que possa haver traços emocionais impactando o comportamento das mães de reborns. Lutos e traumas podem ser alguns.

Também não nego que muitos desses casos não sejam mais que fetiches. Cosplays, cinéfilos que viajam para refazer a jornada (correndo) do hobbit Frodo; ou gente que paga para experimentar nas escape rooms o horror e o medo (aproximados) ao estilo do filme Jogos Mortais. Tudo é game. Tudo são sensações, estímulos, tentativas de reformular nossos desejos e satisfações por meio de experiências diferentes.

No ringue das frustrações e traumas, a racionalidade sempre flertou com a irracionalidade.

Segundo Freud, nossas fantasias são construções mentais que buscam, de alguma forma, explorar que está em falta no mundo real. O problema é que nos domínios dessas elaborações psíquicas podem ocorrer sérios desdobramentos.

Quererem trazer a cargo da Lei direitos a atendimento médico para os reborns, ou transformar o assunto em pauta no Congresso Nacional é um desses desdobramentos.

Isso significa que algo extrapolou os limites - por vezes até benéficos - da fantasia. Por esses motivos, é possível arriscar um palpite: o de que nossa capacidade de separar a realidade da ficção falhou e, assim, tornou-se uma desconcertante patologia. 

Mas a pergunta que não cala (em mim, pelo menos) é a seguinte: por que a existência das mães de reborns incomoda tanto?

Há duas possíveis explicações.

A primeira está no fato de que tanto as mães de reborns que apenas estão elaborando e investindo na fantasia quanto as que afloraram para um tratamento médico-psicológico atencioso indicarem um mal-estar na cultura (viva Freud!).

A segunda explicação é que os prejuízos desse mal-estar são, na verdade, lacunas desconhecidas na própria pessoa que julga - por incapacidade de compreensão, ou por autoinsatisfação.

No fim das contas, desconfio dessas irrupções de assombros a respeito do comportamento indefinido do outro. Nossos incômodos dizem mais sobre nós do que sobre as mães de reborns, para voltarmos ao velho e bom Freud.

Deixo aqui uma dica, para quem quiser se aprofundar no tema. A interessante matéria publicada na Folha de S. Paulo e assinada por Vitória Macedo: Por que mulheres estão sendo criticadas por ter bebê reborn e o que isso pode dizer sobre maternidade (16/06).

O texto é cheio de exageros. Ler os exageros dos outros é um ótimo exercício.

Eis que a certa altura me deparei com uma joia rara. A psicanalista Vera Iaconelli faz emergir o ponto paradoxal da questão. Ou seja, estamos preocupados com quem trata bonecas como bebês. Mas não estamos nós, há muito tempo, tratando bebês como bonecas? Grande Vera! Impossível melhor exemplo de mal-estar cultural.

O que me assusta, de fato, não é a servidão voluntária aos nossos desejos conflituosos (inconscientes ou não), mas, sim, a servidão involuntária de Prudêncio ao seu sinhozinho, que “punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia”.

Gil Piva

O texto é de livre manifestação do signatário que apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados e não reflete, necessariamente, a opinião do 'O Extra.net'.

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