CULTURA!

CARONTE

CARONTE

Por O.A Secatto

Por O.A Secatto

Publicada há 7 anos

Dinanzi a me non fuor cose create

se non etterne, e io etterno duro.

Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate.


(...)


Ed ecco verso noi venir per nave

un vecchio, bianco per antico pelo,

gridando: “Guai a voi, anime prave!


Non isperate mai veder lo cielo:

i’ vegno per menarvi a l’altra riva

ne le tenebre etterne, in caldo e ‘n gelo.”


Inferno, Canto III, versos 7-9 e 82-87

A Divina Comédia

Dante Alighieri




Um céu noturno é o que viu ao abrir os olhos. Mas era com nuvens densas e sufocantes que a baixa abóbada estava preenchida. Raios e trovões em tais alturas. Estando deitado em grande desconforto, fitava o céu com esforço, eis que as nuvens pareciam-lhe ir de cima a baixo aos olhos, como um pêndulo impensável. Então, um vapor denso o cercou: uma névoa espessa e pouco agradável às narinas. Ouviu o chiar de água, como que revolta. Finalmente caiu em si. Estava n’água, por todos os lados rodeado, num barco escuro. Não eram as nuvens que penduleavam diante dele, mas ele que acompanhava o bote sobre as cristas das ondas. Uma forma assomava na popa, de pé, coberto por uma turva túnica. Estava descalço. Mãos pálidas e finas manejavam um grande remo de cauda; e um capuz tolhia a todos a visão de seu rosto, enquanto uma barba grisalha de lá saía em meio ao negrume como que por pura magia. Aprumou-se no barco e, já sentado, se equilibrando, dirigiu-se ao homem:

— Quem és tu? E onde estou?

— Ora! — retrucou o velho, com voz severa — Como se te desses o luxo de ignorar meu nome!

— Só pergunto porque não sei.

— De fato, não deves mesmo. E por que deverias saber o nome daquele que faz a travessia? Tempos funestos!

— Mas quem és, senhor?

— Tolo e ignaro! — replicou. E, tirando o capuz, disse-lhe com olhos coruscantes e altivez — Sou Caronte, teu guia por tais águas tempestuosas.

— Caronte? Mas que Caronte?

— O barqueiro, segundo dizem.

— E que barqueiro?

— Só te somas aos idiotas que aqui recebo. A diferença é que, ao contrário de ti, não os posso atravessar. Quisera eu poder ao menos arremessá-los ao Aqueronte! Aos baldes vagueiam por estas ribeiras, desprovidos de moeda que seja. Por onde andaste em vida, que não sabes da morte e de seus procederes?

— Em verdade não fui instruído de ti, nem de tais procederes. Não sei mais do que me bastava a minha religião: e nela não estavas previsto... Mas... Como é que disseste? — aterrou-se — Morte?

— Sim, estás morto. Nada da vida resta em ti. — E continuava a remar.

— Morto? Como assim morto?! Eu não morri! Não posso ter morrido! — gritou aturdido — A sonhar com o elísio, eramá fui ter com a morte! Não pode ser. Não pode. Não.

— Olha tuas vestes e repara o sangue. É teu. Agradece, contudo. Afortunado és: já tinhas tua moeda. Sê feliz, pois alguma alma de caridade apiedou-se de ti em tua morte... Ou temia que retornasses para assombrá-la...

— Mas como vim parar aqui? Como fui trazido para cá?

— Desses detalhes não me incumbo. Como tiveste o ventre aberto e de que jeito conquistaste teu óbolo são assuntos que não me cabem e que não perquiro. Bastam-me os pesadelos da mente que nunca dorme.

— Por que a morte não me permitiu falar-lhe? Ter-lhe-ia explicado meu fato e minhas inconclusões. Projetos e sonhos inacabados. Ter-lhe-ia argumentado! Meu tempo ainda não havia se esgotado. Decerto me teria escutado e, atentando ao engano, haver-me-ia posto de volta à vida, a que pertencia.

— Vida é termo teu já de antanho. Ora te é a morte apenas. Querias altercar com a morte, então? E lhe explicar tuas razões? Um raciocínio, talvez? Bah! Vae victis! grita a morte aos oradores retóricos da hora derradeira. Não aceita a morte assunto ou argumento que seja, pois em tal hora sua é a vitória. Humilhar-te-ias em vão. O jogo é perdido: a morte sempre vence.

— Pobres mortais somos... Senhores de nada no mundo: é só o que posso concluir...

— E tu, como te chamas?

— Por batismo, sou Virgílio.

— Valham-me meus senhores! Outro não me cabe! Acaso não vieste pelo érebo guiar alma viva contra minha vontade e meu gosto? Serias tu mestre outro de Dante, de Alighieri condutor?

— Não te compreendo, ou o que dizes.

— Abandona o assunto. Não o quero relembrar...

Naquele momento, Virgílio serenou-se por instantes, reflexivo, para então perturbar-se em razão de seu esquecimento ou sua ignorância. Num afã de curiosidade e inquietação, indagou ao barqueiro:

— Decerto cometi algum crime para estar aqui? E como chegarei ao Paraíso, se existir?

— És inclinado a escarnecer de minha paciência ou apenas vítima da tua própria parvoíce? Difícil dizer, confesso.

— Qual a razão do comento?

— Os mortos de fato não se recordam lá de muita coisa da vida, eis que não mais a têm. Entretanto, de todos que já atravessei, em muitos vi a sombra da desgraça sobre o semblante e palavras murmuradas a remoer infortúnios. Apegam-se às suas infelicidades: olvidam suas alegrias.

— Seria eu, quiçá, rara exceção...

— Já foi dito um dia: Quinci non passa mai anima bona. Vê por ti mesmo o que disso extrais. Sim, o Paraíso existe. Digo-te, porém, que não há engano nas estruturas da morte. Teu passado te pesou, mais que teus bons atos.

— Não me lembro de meus últimos dias, ou se fiz algum mal. Ao contrário do que dizes, vêm-me à memória minha família e minhas coisas. Meus projetos.

— Conforme disseste, quiçá rara exceção.

— Mas por que te aborreces com os que vagueiam pelas ribeiras?

— São moedas que não me chegam! Já não se segue a tradição e o óbolo não mais é posto sobre a boca ou sob a língua dos mortos. Há gente demais do outro lado do Aqueronte... E há moedas de menos em minha arca...

— Para que queres moedas? E onde gastá-las?

— Quando tiver o suficiente, comprarei minha liberdade.

— E quanto deves ajuntar?

— O que julgarem meus juízes.

— Haveria salário a um servo do inferno?

— Isso que dizes não sou! — exasperou-se o barqueiro, com olhos vívidos e fulgurantes — Sou aquele que se atarefou do serviço sujo dos céus: um limpador de fossas de outra estirpe...

— Como assim?

— Não escolhi isso para mim. Foi-me imposto, bem o saibas.

— E o que, então, viria ao encontro de tua preferência e desejo?

— Sair daqui, abandonar as águas e descansar; pés firmes no chão. Enquanto todos vão para seu repouso eterno, ou seguem seus caminhos pelos círculos, estou a labutar. Lançou-me aqui poder maior, como punição por meu desejo. Ao érebo fui acorrentado.

Diante da lamuriosa conversa de Caronte, uma faísca de pensamento atingiu a mente de Virgílio, como o raio que acerta a árvore. Foi num rasgo que disse:

— Leva-me de volta.

— Tens na testa a marca da estupidez certamente! Isso não te é permitido. Muito menos a mim. Tal é a regra.

— Toda regra se submete a exceções, sem dúvida!

— A certeza é só tua. Dela te digo que não comungo.

— Algo deves saber, velho Caronte.

— Se soubesse, por que to diria?

— Pelo meu nome, que te assombrou, e pelo que te posso prometer.

— Já por mim passaram Hércules, Orfeu, Eneias e Dionísio. E eles voltaram por onde vieram. Teu nome é célebre, mas tu, não. Minha agora é a necessidade de mais sinônimos de parvulez para a ti me dirigir... — E continuava a remar.

— Insisto, barqueiro.

— E qual é a promessa?

— Leva-me de volta que reavivarei a tradição.

— A qual te referes?

— O óbolo voltará a fluir e a te encher a arca. Juro-te. E os que virão trarão consigo moedas para os que vagam pelas margens!

— Sandices! Não te posso fiar.

— Não hei de fugir. Não poderia. Virei com meu próprio óbolo e, caso não avive a tradição em uma moeda que seja, no dia de minha morte, quando diante de ti novamente, podes arremessar-me no Aqueronte, ou deixar-me errar pela eternidade na ribeira do rio.

— Isso me pode custar alto preço.

— Ou render-te a liberdade.

— Veremos tua eficácia. Que seja. Tens minha palavra. Aproveita teu tempo e conclui teus trabalhos: terás dez anos, e dez anos apenas.

— Dez anos? Tal prazo é mais que tempo.

— Pode-o ser para ti. Para mim, logo estarás de volta. Nesse tempo, não te esqueças de tua promessa, pois é o cumprimento dela que te vai render a passagem ou o afogamento sem fim. Vai.

Caronte, assim, tocou-lhe a testa com o dedo indicador. Virgílio se foi.



1 No existir, ser nenhum a mim se avança, / não sendo eterno, e eu eternal perduro: / Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança! (...) Eis vejo a nós em barca se acercando, / de cãs coberto um velho – “Ó condenados, / ai de vós!” – alta grita levantando. / “O céu nunca vereis, desesperados: / por mim à treva eterna, na outra riva, / sereis ao fogo, ao gelo transportados.” (tradução de José Pedro Xavier Pinheiro)


2 “Alma inocente aqui jamais transita.” Inferno, Canto III, verso 127. A Divina Comédia de Dante Alighieri. (tradução de José Pedro Xavier Pinheiro)




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