Cultura

O Humor como estratégia

O Humor como estratégia

‘Operação Impensável’, mais recente livro da premiada escritora Vanessa Barbara, aborda questões como amor, traição, luto e vingança

‘Operação Impensável’, mais recente livro da premiada escritora Vanessa Barbara, aborda questões como amor, traição, luto e vingança

Publicada há 8 anos

Foto:  Fernanda Fiamoncini / Divulgação Objetiva



Ela não só pôs o Mandaqui no mapa como também trouxe mais humor às manhãs de segunda-feira com suas crônicas semanais. Paulistana, mandaquiense e corintiana, a premiada jornalista e escritora Vanessa Barbara, além de ser colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e International New York Times, também é senhora de três tartarugas de água doce — originalmente Jacinto e Napoleão, sendo o Moisés adotado depois —, de um estilo inconfundível de textos bem-humorados sobre os mais improváveis assuntos e de uma biblioteca que não cabe em seu novo apartamento. (Ela ainda não sabe de quem foi a ideia de adotar as tartarugas.) De mudança do Mandaqui para Santana (bairros contíguos da cidade de São Paulo), Vanessa é um prodígio: seu trabalho de conclusão de curso (o famoso TCC) foi posteriormente publicado pela Cosac Naify com o título O Livro Amarelo do Terminal e ganhou o Prêmio Jabuti de Reportagem de 2008. Na categoria romance, seu livro Operação Impensável foi vencedor do Prêmio Paraná de Literatura de 2014. Ano passado, seu livro Noites de Alface foi reconhecido pelos críticos franceses como o melhor romance de estreia estrangeiro lançado no país em 2015. Ou seja, a moça já não é mais apenas uma “jovem promessa”, como então constante da seleção de jovens escritores brasileiros da revista Granta em 2012. 

“O mundo não faz necessariamente sentido e eu adoro essas pequenas bobagens que às vezes revelam muito e nada ao mesmo tempo”, comenta. Em seus textos, ela também faz uso do nonsense: mas diz que se controla em respeito ao leitor. Para privilégio desta edição do Cultura!, Vanessa concedeu uma divertida entrevista por escrito, em que falou um pouco de sua vida e obra. Confira os principais trechos da conversa.

“Operação Impensável” é seu segundo romance sobre perda e separação. Por que a recorrência do tema?

Não sei bem, mas acho que todo escritor tem as suas obsessões... E eu só descobri definitivamente que perda, luto e separação eram as minhas quando terminei Operação Impensável e me atinei com as semelhanças temáticas com o Noites de Alface. É um tema forte, e me interesso sobretudo pelos sobreviventes: como lidar com uma perda importante, como encarar e reconstruir o passado, como se livrar dele. Mas os legumes e hortaliças também são um tema recorrente: um dos livros tem couve-flor à milanesa e alface no título, o outro tem repolho logo na dedicatória. Digamos então que “perda” e “legumes” são os meus temas recorrentes.

A história de Tito e Lia você vai costurando estratégias de guerra, inclusive a operação que dá nome ao livro. Como surgiu a ideia dessa relação?

Foi meio automático; comecei a narrar a história da separação e fui me dando conta de que aquilo era como uma Guerra Fria, um período de conflitos insidiosos e medidas absolutamente insanas onde ambos os lados estavam sempre prestes a explodir. Aí pensei que Tito era como Nixon (“I’m not a crook” [‘Não sou um trapaceiro’]) e comecei a pesquisar. Durante o processo, fui percebendo vários pontos de contato com a história de Lia e Tito, então dei a Lia a profissão de historiadora, e assim foi...

Apesar do característico humor de seus textos em vários trechos do livro, há muita tristeza na história, em confissões tão íntimas, como na parte em que Lia escreve a Tito: “Eu queria também que você soubesse (...) a fragilidade do que você tem nas mãos (...), a vontade que eu tenho de te dizer: cuida de mim, não me deixa abraçar os joelhos e me sentir sozinha, e não vai embora. Não vai embora nunca”. Como foi equilibrar isso?

De novo, acho que não é uma coisa muito planejada... Como em Noites de Alface, ao me deparar com acontecimentos muito tristes, minha saída é sempre encontrar a graça, como se a coisa fosse tão triste que chega a ser cômica. É um mecanismo de defesa também. Muito útil numa Guerra Fria... Se ambos os lados ficassem fazendo piada, teríamos um período histórico bem mais sensato.

No livro há a foto de seu buquê de casamento. Afinal, como ele foi parar no Museu dos Relacionamentos Malogrados na Croácia? Quem escreveu o texto informativo?

Eu enviei o objeto pelo correio já com o texto informativo. Cheguei a visitar uma vez o Museu e achei incrível. Escrevi uma matéria sobre isso também, na revista Serafina (www.hortifruti.org/2012/06/24/o-museu-amor-malogrado). O museu é mais uma prova de que a arte e o senso de humor podem ser restauradores, podem trazer equilíbrio e alívio. “A única coisa que restou de um grande amor foi a cidadania francesa”, diz uma das legendas.

Mario Quintana disse nunca ter escrito uma vírgula que não fosse uma confissão. Fora o mote de “Operação Impensável”, o que de sua obra, até hoje, acabou tendo elementos biográficos?

Quase tudo, tirando aquilo que eu inventei. (Aplausos para essa resposta.) Noites de Alface tem muita coisa dos meus vizinhos, mas é claro que não são retratos de alguém em específico, mas uma composição de várias características de pessoas distintas. A mesma coisa acontece em Operação Impensável e em A Máquina de Goldberg, que por exemplo tem muito da minha infância, ainda que eu nunca tenha sido um menino punk. A ficção quase sempre tem elementos biográficos, o segredo é saber reescrevê-los, retrabalhá-los e dar sentido a eles em um ambiente ficcional. Tem um pouco de mim em Otto, Ada, Teresa, Mariana, Lia — só não tem nada de mim em Tito porque convenhamos. 

“Noites de Alface” foi reconhecido pelos críticos franceses como o melhor romance de estreia estrangeiro lançado no país em 2015 e, na França, vendeu mais do que no Brasil. Alguma explicação?

Não. Mas no Brasil é difícil vender literatura mesmo.

Numa postagem em rede social sobre “O Louco de Palestra”, você menciona, como características da crônica, que os “textos são curtos e hão de agradar até aqueles que não gostam de ler e preferem, sei lá, dissecar um piolho”. Qual a importância da crônica na literatura brasileira? Ela continua atraindo o leitor?

Não sei se continua atraindo o leitor, mas está bem viva ainda (Luis Fernando Verissimo, Humberto Werneck, Antonio Prata, Gregório Duvivier) e tem uma importância histórica enorme. Sou suspeita para falar de crônica, mas acho um gênero imenso.

Na mesma postagem, você brinca sobre as vendas de “O Louco de Palestra”. É possível viver só de literatura no Brasil?

Acho que alguns escritores conseguem, mas a maioria recorre a outras ocupações para ganhar a vida, como eu com o jornalismo e as traduções.

Você já declarou que “para qualquer introvertido, estar com pessoas é extremamente cansativo” e que “a coisa mais chata da literatura hoje em dia são as noites de autógrafo”. É quase misantropia? (risos)

É introversão, o senhor respeite. Além disso, embora eu ache positivo que o autor tenha contato com o leitor, não vejo como um elemento inerente à profissão. O que é inerente à profissão do escritor é que ele sente e escreva (também pode escrever de pé, se assim preferir), e pronto. Tudo além disso é acessório, pode ser até desejável, mas não é imprescindível.

Você sempre se confessa tímida e introvertida, mas não parece ser assim nos seus textos. A escrita, nesse ponto, é libertadora?

Sim, eu fico remoendo tudo que não consigo dizer na hora e depois vou lá e escrevo até cair o olho. Mas sério: acho que são só formas diferentes de se expressar, uma tão válida quanto a outra. Eu podia ser uma oradora retumbante, mas nasci escritora.

Depois da crônica “Queria poder almoçar” (em que você diz precisar de dez a doze horas de sono e ter “atraso de fase”, só sentindo sono depois das três ou quatro da madrugada), a pergunta é inevitável: ainda sofre com compromissos pela manhã? Tem conseguido fugir deles?

Sempre. A manhã pra mim não existe. Ela é feita para dormir. Sexta-feira tenho que pegar um avião na hora do almoço e será um sofrimento.

Sabemos que o Mandaqui é uma fonte inesgotável de histórias, mas qual é o desafio de escrever sobre o cotidiano?

Buscar a diversidade, não se repetir demais... Quando a crônica é semanal, às vezes dá um desespero de não conseguir dizer nada novo, mas nessas horas tem que respirar fundo, sair na rua, ouvir conversas — sempre aparece alguma coisa boa. Eu também não gosto de usar sempre o mesmo tom, os mesmos temas, fico me achando tediosa, então mesmo que alguma crônica dê “certo” ou seja popular, não me sinto inclinada a repetir a fórmula. Também não costumo falar dos mesmos assuntos que abordei nos meus textos para o NYT ou nos livros que escrevi, a menos que exista um ângulo muito diferente; acho que quebrar a cabeça atrás de novos temas é trabalhoso, mas é uma forma de respeitar o leitor. 

O Verissimo diz que, às vezes, ao usar a ironia, é necessário colocar um aviso no texto: “Atenção: ironia”. Além disso, seus textos têm muito humor que depende de referências que você faz. Há leitores que acabam não compreendendo o humor ou a ironia? Já teve algum caso de “reclamação do consumidor”?

Toda semana. É uma das coisas mais difíceis de acertar... Você até pode exagerar muito, pintar um cenário bem improvável, mas sempre vai ter alguém que acredita e fica ofendido ou revoltado. Um dos exemplos mais recentes foi a dupla de crônicas O meu irmão e Direito de resposta. Teve gente que realmente achou que o meu irmão tinha obtido um direito de resposta judicial e estava usando aquele espaço para defender a sua honra. Isso aconteceu por mais que eu tenha forçado a barra no começo e insinuado que ele era um cabeça de melão. Acho que às vezes as pessoas nem leem direito e já vêm com pedras na mão — uma vez, respondi um e-mail ultrajado e expliquei gentilmente que a crônica era irônica, que eu não pensava realmente aquilo, e que isso ficava claro nas linhas tal e tal. O leitor respondeu com certo ceticismo, mas admitiu que nem tinha lido direito o texto. Francamente. Em todo caso, nunca se pode descartar o fato de que o escritor é que errou no tom e não deixou a ironia clara o suficiente. Sempre que há um mal-entendido desses eu dou um passo para trás e vejo se a culpa também não foi minha.

Muitas pessoas idealizam o escritor como alguém solene, com uma enorme biblioteca, cercado de livros até o teto e que, num ambiente inspirador, senta-se e produz bons textos com facilidade. Como é o seu processo criativo, você tem alguma rotina de trabalho?

Não... Queria muito ser desses escritores regrados que acordam cedo, fazem exercício, tomam café e antes das onze já escreveram três contos, mas como sofro de vários distúrbios de sono acabo com os horários todos bagunçados. Então vou escrevendo no desespero, quando consigo e quando estou bem. Os prazos é que vão me disciplinando.

Para escrever, precisa de silêncio? Ouve música?

Preciso de silêncio e fico irritada até com o barulho de tartarugas batendo o casco nas paredes de um aquário. Guardo um par de tampões de ouvido a postos e alguns links com ruídos brancos, mas tenho enorme dificuldade de me concentrar diante de qualquer tipo de barulho. Música, nem pensar. Só quando termino, ou nos intervalos.

Como o nonsense surgiu na sua escrita? É algo trabalhado — ou simplesmente flui?

Não sei, acho que aparece. O problema é conter, senão ninguém entende nada.

Você já publicou livro-reportagem, coletânea de crônicas, quadrinhos, romance, livro infantil. É importante para um autor testar-se em outras áreas, experimentar?

Não sei se é importante, mas eu gosto muito. Acho que tira um pouco da monotonia de fazer sempre a mesma coisa, do mesmo jeito, para o mesmo público. Fora que você aprende coisas que pode aproveitar em outro gênero, tipo as técnicas narrativas no jornalismo e a pesquisa jornalística na ficção.

Como é a experiência de escrever em outra língua? Os textos para o “International New York Times” já surgem em inglês ou há uma escrita prévia em português?

É a coisa mais difícil que eu já fiz... Escrevo os textos já em inglês, e depois eles passam pelos processos de edição e checagem. Sinto que estou tendo que aprender a escrever tudo de novo. Completei dois anos no International New York Times há pouco e ainda não estou nada à vontade com o processo de escrita. A confusão é tanta que às vezes volto a escrever em português e a cabeça dá um nó, não consigo mais fazer nenhuma das coisas. Fora que eu nunca soube direito quando usar as preposições in, at e on, o que não pega nada bem quando você precisa dar a impressão de que sabe o que está fazendo.

Qual sua relação com a casa? Você é uma pessoa caseira? Encara a cozinha?

Odeio cozinhar. Gosto de ficar em casa e de escrever na varanda tomando o sol da tarde, enquanto decido o que vou pedir de janta.

Você acha que, mesmo com o e-book, o livro físico continuará tendo seu espaço entre os leitores? Você prefere este ao livro eletrônico?

Gosto dos dois. Livro físico sempre terá espaço, claro.

Os livros ocupam muito espaço na sua casa? Como é a sua biblioteca? Tem ideia de quantos livros tem? Vão todos para Santana?

Não tenho ideia, mas não vão todos para Santana. Como são muitos e nunca tive estante o suficiente, eles ficam em caixas ordenadas alfabeticamente (tipo A-Ca, Ce-F etc.). Essas vou deixar por aqui. Em todo caso, tenho umas sete fileiras só de livros que ainda não li ou que gosto de deixar expostos na estante por motivos sentimentais — esses já foram para Santana. Também estão em ordem alfabética. Eu sou a louca da ordem alfabética.

Tem algum livro que você, ao ler, por gostar tanto, não queria que terminasse?

Guerra e Paz! E olha que é gigantesco. Sei lá, eu poderia passar a vida lendo Guerra e Paz e achando graça nas epifanias recorrentes dos personagens. Fiquei chateada quando acabou e eu tive que escolher outra coisa. Mas eu também sou uma pessoa meio avessa a mudanças.

Qual o próximo livro?

Ainda não tenho nenhum projeto. As crônicas e os artigos consomem toda a minha memória RAM e capacidade de processamento. Sobra pouco para escovar os dentes, cuidar das tartarugas e ter insônia.





O.A. Secatto








































































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